Por Suzana Pires (texto e foto)
Aos que vem e não sabem aonde vão.
Aos que esperam e não sabem o quanto.
Aos que andam depressa para nunca chegar.
Aos que esperam e não sabem o quanto.
Aos que andam depressa para nunca chegar.
Aqui
simplificamos a vida. Perdemos o tempo de plantio. Vivemos do outro.
Ninguém faz muito por aqui. As mulheres ainda cozinham
o alimento básico. Os homens esperam. Mas já não conversam mais. Não vivem mais
em grupo como antigamente. Tempo de solidão. As crianças cochicham e riem meios
sorrisos e fazem maldades. Coisas de criança, ou não. Mas afinal quem se
importa? Não há mais quem olhe por elas. Na escola, os professores estão à
espreita, nas janelas. Há muitas janelas. Medo do futuro. Tanto que não se sabe
se gostariam de parar o relógio ou acelerá-lo, para que esta agonia acabe.
As mulheres andam lentas e fazem aquilo que podem,
depois param para esperar também. Daqui dá para vê-las sentadas à porta da
cozinha, ajeitam a cadeira e as mãos sobre o colo e olham... E espicham o tempo
de espera. A espera parece um descanso.
Os homens perderam o interesse pelo sexo, as
mulheres também. Já têm uns cinco anos que não nascem crianças por aqui. Eles
bebem muito e caem ali mesmo nos cantos das ruas e ficam até acordar, ninguém
se importa.
Quando o sol bate forte todos parecem dormir de olhos
abertos, e a espera parece que se arrasta ainda mais. Olhando daqui da minha
janela do andar de cima, vejo tudo e torço por um temporal. Este é o único
momento que todos se agitam. Quando ele chega e trás o reconfortante barulho
das chuvas, posso descasar da minha vigília, durmo feito bebê que nada sabe e
não teme crescer.
Tenho sonhos de ir embora, mas isso não importa no
momento. Imagino, durante o tédio dessa espera, lugares com cores e movimento e
barulho. Não há mais barulho aqui. Mesmo as crianças se afastam para falar, até
elas temem cortar o silêncio.
Pergunto se ainda sonha o povo daqui. Mas sei que não,
ou talvez seja uma espécie de sonho esta espera pelos soldados com seus canhões
e fuzis e bombas.
Sabemos disso. Todos sabem. Só a guerra nos salvará
desta morte lenta de viver de espera.
Eles
atravessam o deserto sem lamentos, já faz muito que não olham para trás nem têm
interesse de chegar. Onde quer que seja. Apenas caminham seguindo o comando.
Param para beber e comer umas duas vezes por dia, ou serão semanas? Ou meses? Quem
sabe...? Não se preocupam com isso, não contam mais o tempo. Ao final de tudo
ouvirão uma ordem e farão o que deve ser feito. O que todos esperam deles.
Nasceram para isso. Também já sonharam, mas hoje não, sonhar também cansa, e
não podem gastar-se.
Lá
ninguém tem tempo a perder, ele é a moeda mais importante depois do dinheiro. Alguns
dizem inclusive que ele é dinheiro. Ora caminham na mesma direção, todos. Ora
seguem todos em direções diversas. Mas não importa, nem a eles nem a nós,
porque aqui se trata da pressa.
Já foi diferente, essa gente. Já almoçavam em grupo,
com a família e havia avó e avô para as crianças brincarem, agora elas também tem
pressa e os velhos estão na cidade da espera, outra que existe no tempo apenas.
As comidas são feitas por outros e não há mais mãe que faça comida nem pai que
faça fogo, o fogo é profissional e arde rápido.
Só se detêm quando esbarram em alguém e param por
segundos para retomar o caminho. Ficam incomodados de ver o outro e saem sempre
pensando que tem razão e, não raro, verdadeiramente odeiam o outro por este
breve encontro e pela interrupção que causa.
Eu sabia
da existência desses todos, e sabia que um dia o encontro aconteceria. Na
verdade, todos falavam disso há muitos anos, mas eles se esqueceram, e eu não.
Foi uma grande catástrofe ambiental que os trouxe para
cá. Chegaram quase correndo com os poucos pertences que sobraram, pois pela
pressa de chegar, pelo medo de não encontrar a saída ou pelo peso, deixaram
seus bens no caminho.
Eles chegaram, e finalmente precisam parar, não há
mais aonde ir. Ficam pelas calçadas sentados à espera que alguém lhes
oferecesse abrigo, e o nosso povo começou a movimentar-se rapidamente, a
esvaziar suas casas para abrigar os recém-chegados. Alguns pegam água e oferecem
aos viajantes sedentos ali mesmo nas ruas. As crianças puxam as crianças recém-chegadas
para brincar e logo se faz uma algazarra que eu nunca ouvira.
Só eu não me distraio e por isso vi, antes do pôr do
sol de ontem, uma fina linha que se movimentava parecendo uma serpente que
cobria toda a linha do horizonte. Até onde meus olhos alcançavam. Aguardei, e
ao escurecer o movimento cessou. Não sabia que atitude tomar, então fiz o que
sempre faço, esperei. No curto período desta noite pensei que fosse tempo de
espera novamente, mas logo ao amanhecer eles chegaram com seus uniformes e suas
armas. E são muitos.
Por Suzana Pires, repórter fotográfica por profissão.
Fotógrafa ensaísta/documentarista e ativista política e ambiental. “Escritos no trem” são contos e poemas que
escreve enquanto percorre o trajeto entre a cidade de Novo Hamburgo até Porto
Alegre capital do Rio Grande do Sul. Faz parte de grupos de poesia e publica
esporadicamente nas redes sócias. Este é seu primeiro conto publicado.
muito boa a matéria !
ResponderExcluirwww.filmesepicosonline.com
Obrigada. Gracias.
ExcluirPerfeito, o conto. A Suzana conseguiu criar um clima perfeitamente condizente com a mensagem proposta. Bastante criativo, o conto nos chama à reflexão.
ResponderExcluirRoberto, obrigada pelo retorno. Isto do clima que falas é muito importante para quem está se "atrevendo" neste caminho de tentar se comunicar com as palavras.
ResponderExcluirSuzana, que lindo. Poético, dramático, "interiorizante"! Adorei!
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