Por Marcelo Ariel - poeta e pensador
O Coletivo
Percutindo Mundos trabalha dentro da chamada visão arquitetônica da música, na
invenção de paisagens sonoras que seu idealizador, o smetakiano Márcio Barreto
chama de cinema, operando um deslocamento metafórico conceitual da música de
invenção cuja alma é o improviso. Podemos falar em um procedimento selvagem no
sentido de espontâneo e autêntico de recuperação dos movimentos originários dos
processos de criação musical? Creio que sim, tendo como vetores o cruzamento
entre estes procedimentos e uma visão jazzística da música caiçara, das bases
percursivas das tradições musicais orientais e africanas, do modus operandi do
punk rock de bandas como Inocentes, Cólera e Dead Kennedys, isto em uma inusitada
e constante amálgama com as leituras de poemas, teses de revisionismo
histórico-genético do povo brasileiro, diálogos profundos com Walter Smetak,
UAKTI, Pink Floyd e com a antropofagia de Oswald & Mário de Andrade. E esta
verdadeira alquimia sonoro-imagética resulta no CD que vc tem agora em mâos. O
Percutindo Mundos toca mais A MÚSICA do que canções ou compartimentos sonoros,
não procurem aqui linearidades e esquadrinhamentos geométricos dessa música que
também é cinema e de certo modo etnografia sonora. Como acontece com as transposições de
manobras do skate para o surf, Márcio Barreto está mais interessado em como
levar para sua inventiva música nova contemporânea, para seu jazz caiçara, aquilo que extrapola o conceito de canção instrumental ou cantada, as conexões
profundas entre tocar e sonhar uma música - o destino do Percutindo Mundos é a
pajelança. Vocês, ouvintes, podem fechar os olhos para ver melhor o que estou
querendo dizer aqui. Existe algo de despretensiosa busca pelo som que se
transforma ele mesmo em música nos trabalhos deste grupo. Talvez o objetivo do coletivo, com este CD, seja o de fazer de cada ouvinte um flaneur de universos
interiores; se há um mundo fora de nós,
ele se desdobra em muitos mundos por dentro, é exatamente como uma meditação
ativa, uma dança interna de imagens e paisagens invisíveis e, por isso mesmo, muito reais que este CD pode ser apreciado. Você não deve ouvir este disco como
se ele fosse apenas música, mas como se ele fosse uma cartografia de dimensões,
de lugares onde a música nasce. (texto do encarte do CD "O Cinema Invisível").
Revista
Pausa: Começo com uma pergunta valise: o Cinema Invisível é um disco
experimental, onde você materializa a chamada "música cinema". Tive a honra de
escrever o texto do encarte do disco (ver acima), mas gostaria de abordar nesta
entrevista aspectos do processo de elaboração do CD. Me diga, Márcio, o que é a "música cinema" e como ela se relaciona com um outro conceito também muito
importante para você, a chamada "Música Contemporânea Caiçara"?
Márcio Barreto: A "músicacinema" é uma decomposição de ruídos, silêncios, diálogos, filmes,
entrevistas, paisagens, músicas, ideias, lembranças e esquecimentos sobre o som
primitivo, inconsciente, coletivo, no fundo, é a tentativa de inserir quem a
ouve dentro do objeto arte. Na “música contemporânea caiçara” ela é uma das
camadas metanarrativas que interagem com os músicos como um instrumento
multifacetado que estimula diálogos na improvisação. É experimental no sentido
em que inventa novas possibilidades para a criação, trazendo para a música
outros elementos semânticos, extralinguísticos, sinestésicos, uma
experimentação que se funda pela dúvida, pela incerteza, pela possibilidade
constante da mudança, da ressignificação de identidades culturais e da reflexão
sobre a gênese e a contemporaneidade caiçara. Desse modo, a música
contemporânea caiçara percorre e altera paisagens que rementem à influência das
culturas indígena, europeia e africana.
Revista
Pausa: Então ela nasce de um conceito muito mais amplo do que simplesmente se
inserir no mercado totêmico canônico da arte. Você fala quase na linguagem de
uma tese, o que muitos idiotas podem considerar pretensioso, como é que pode um
menino jogador de pelada da praia de São Vicente, ex-Punk, autodidata como eu,
querer inventar, como diz Gilberto Mendes, aliás um fã do seu trabalho, inventar
uma coisa, um tipo de música que não existe, querer inventar conceitos? Gilberto, apesar de gostar do seu trabalho, não o coloca dentro da esfera da
música sinfônica, mas de algo maior, que você está buscando. Você não tem medo
de se perder no meio de tantos conceitos e invenções?
Márcio Barreto: Ao
ler a pergunta, ouço o som de um trem em movimento enquanto Gilberto Mendes "cantarola antigas" canções de sua prodigiosa cultura, formada, principalmente, pela
vivência e reflexão de seus 92 anos. Estar ao seu lado, um autodidata também,
assim como Livio Tragtenberg, que tão bem o denomina de “indestrutível”, é
sempre um amplo e profundo aprendizado iniciado por nossos antepassados, os
tupinambás, e perpetuado pela fatalidade da vida: vivemos para sermos
lentamente devorados. E nesse infinito jantar, a inventividade é justamente o
que nos faz resistir, permanecer, contar a história com nossa própria
linguagem, reinventá-la, criar novas identidades culturais, misturá-las,
ressignificá-las, a ideia como motor continuo do mundo, do universo, a música
como uma infinita rede de memórias e desmemorias, a música como palavra,
sombra, chave, vontade, cinema, dança, realidade expandida, a criação de uma multiinteligência
estimulada por metanarrativas –
fragmentos de narrativas diversas que se recombinam em camadas de volume e "alterações sígnicas de
macrominimalismos" - a ideia de tirar o
máximo do mínimo em camadas que se inter-relacionam em harmonias timbrísticas, voltadas mais ao
caráter único de cada som, do que à harmonia das notas decodificadas desde a
Antiguidade. Na verdade, os conceitos nasceram antes da música, antes mesmo que
eu soubesse tocar qualquer instrumento. Desde então, procuro criar uma música
que não acabe, que reverbere em outras linguagens, uma única música que que se
modifica a cada execução.
Revista
Pausa: Voltando ao CD, que deve ser um objeto estranho no meio de tanto lixo
gravitando em volta dos editais de cultura, ouvi o disco do Percutindo e ele é,
repito, um objeto estranho. Gostaria que você comentasse um pouco algumas faixas
e depois falasse sobre os artistas que você convidou para algumas "músicas cinema".Você conseguiu fazer o Gilberto Mendes cantar, é isso?
Márcio Barreto: O CD pode
ser visto como um longa-metragem, “a música para os olhos” de que falava
Cartola, pois é um documentário imaginário sobre a identidade cultural caiçara,
uma ficção sem começo, meio ou fim, são faixas que se bifurcam e criam novas
narrativas ao se procurar, pensar, refletir, sentir, "relembrar entregar-se", uma
narrativa de múltiplas escolhas e eternos retornos. É um objeto estranho na
medida que é uma música nova, um tipo novo de música, criado não a partir da
mistura de linguagens musicais, mas baseada na ressignificação de identidades
culturais, e por ser um tipo de música nova, o que por si só não infere
qualquer valor à criação, é preciso que o corpo se adapte ao novo, permita-se a
abrir as portas para uma comunicação mais profunda e direta. É estranho também
por que trata da cultura caiçara, histórica e antropologicamente relegada ao
esquecimento, ao mesmo tempo que participa da gênese e do desenvolvimento da
brasilidade, esse conjunto móvel e contraditório de conceitos e sentimentos que
nos definem. Convidamos o compositor Gilberto Mendes, que estreia "mundialmente" como cantor em “chuva oblíqua (que abre o CD)”, interpretando fragmentos de
canções alemãs e americanas das décadas de 1940 e 1950. Livio Tragtenberg
participa em “nu - o silencioso mundo de Tragtenberg”, onde convida-nos a
escutar a cidade de São Paulo. Laert Sarrumor, do Língua de Trapo, interpreta um fragmento
do poema “Macunaíma blade runner”, na música “os sapos”. Com 8 faixas que se unem
imperceptivelmente entre seus fins e começos, o CD é um convite à co-criação.
Revista
Pausa: Quando você diz que o CD pode ser visto como um trilha de um filme, ou
melhor, como um filme invisível, vejo nisto um eco do que o próprio Gilberto
Mendes afirma quando diz que o que ele fez na verdade foi uma música cinema,
uma música teatro, acho interessante este diálogo de gerações que se
estabeleceu entre o coletivo e o que você mesmo em um momento cita como "música nova" ou "nova música", a ordem dos fatores altera mas não tanto. Para encerrarmos, me diga
quanto tempo levou a gravação do CD, quando ele será lançado e fale um pouco
também sobre o atual momento do Percutindo Mundos. Vocês tocaram recentemente
com Tom Zé, participando de um extensa homenagem ao Walter Smetak. Como sou
no fundo um barroco e gosto de atrelar uma pergunta em uma ideia, diga ainda,
você vê uma relação entre a pesquisa de Smetak e o que vocês estão fazendo hoje
e por que?
Márcio Barreto:
Ecos que se perpetuam e devem reverberar, inspirar mudanças. O lançamento, agraciado
pelo FACULT 2014, edital de apoio à cultura da Prefeitura de Santos, prevê 3
apresentações – a primeira em Caruara, área continental de Santos, acompanhada
de oficina, a segunda em 16 de agosto no Teatro Guarany – Centro, e outra em 05
de setembro na Pinacoteca Bendito Calixto. Em todas as apresentações o público
é convidado a improvisar com o coletivo, prática que vem desde as primeiras
formações. Hoje temos a possibilidade de entrar em contato e trabalhar com
grandes pesquisadores e pensadores de diferentes linguagens, como Livio
Tragtenberg, que recentemente nos convidou para participar do “SME TRACK”, um
amplo evento com concertos, encontros e oficinas, que teve a participação de
Tom Zé em um dos concertos no Sesc Vila Mariana, São Paulo, acerca da obra do
inventivo decompositor Walter Smetak, que sem dúvida alimenta uma relação
profunda sobre o que fazemos, na medida em que vê no som, não apenas a música, mas
a possibilidade de expandir a consciência e diversificar o imaginário. Também criamos instrumentos a partir do
cotidiano e de sua reelaboração, misturando o artesanato e a tecnologia, o que
de certa forma conecta o ancestral e ao contemporâneo.
Revista
Pausa: Faltou apenas você falar sobre a formação do coletivo que participa do
CD. Como funciona o coletivo e quais são os projetos em andamento?
Márcio Barreto: Participam do CD
Célia Faustino (percussão e voz), Robson Peres (viola erudita, ronda
smetakiana), Fernando Ramos (sax, percussão e voz), Erik Morais (percussão,
ronda smetakiana e voz), Guilherme Barros (cordas, programação e co-produção
musical), Manoel Pio (percussão e bateria), Denyse Di Favero (voz), Galeno
Malfatti (luthieria). Eu assino as composições, letras, a concepção de novos
instrumentos, luthieria e produção musical, além da voz e de tocar alguns
instrumentos. O Percutindo Mundos funciona como um coletivo de artes integradas
e atualmente trabalha na pesquisa “a mulher que voava com os peixes”, uma investigação
em dança contemporânea selecionada pelo Projeto Ocupação #32 e CorpoSubCorpo no
Sesc Santos que, através do mito guarani da “terra sem males”, discute as
questões de gênero e o abjeto na arte.
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