Suzana Pires (Texto e imagem)
Quando
chega o inverno aqui nos pampas, com sua umidade que lava as paredes, relembro
sempre da história. A única que ouvi dele mesmo, o índio charrua...
Ouvi
falar dele nas minhas andanças pela fronteira, quando, sonhando fazer um
projeto que abordasse a relação dos moradores dos dois lados da divisa entre
Brasil e Uruguai, caminhei com minha mochila e câmera pelos mais ermos lugares
deste rincão.
Certa
feita, numa roda de chimarrão entre os peões da fazenda Ananás, um homem meio
bronco e com a pele cor de bugre, provável descendente dos povos nativos daqui,
desandou a falar dos antigos habitantes da região. Contou que havia, por
aquelas bandas, um “tal índio” que contava agora quase cem primaveras. Nascera
no final do século XIX e, órfão de pai e mãe lá pelos dezoito anos de idade, saiu da
região para viver nas cidades. Participou, segundo as lendas locais, da
Coluna Prestes e acabou parando no Nordeste do Brasil. Por lá tomou contato com
outros povos nativos e participou das suas lutas pela terra.
Depois de
sucessivas derrotas e de ver exterminadas as aldeias onde viveu, migrou
novamente para a cidade. Deste ponto em diante ninguém sabe muito sobre a vida
do velho Sepé, era assim que o chamavam. Num resumo da história, conta que
por ter se perdido no mundo do vício, foi internado em um hospício. Ali ficou
como um indigente durante muitos anos, quando finalmente conseguiu fugir embrenhou-se
nos matos e ali viveu por vinte anos... Sozinho. Tempo necessário para esvair
sua dor e a raiva que acumulou de tudo e todos ao seu redor. Tempo necessário
para reconstruir-se, para não sucumbir ao ódio.
Durante
esse período, tratou de reencontrar-se com a terra, foi o jeito que encontrou
para sobreviver. Reaprendeu as leis da mata, das águas, do fogo e do ar.
Integrou-se de tal forma à natureza e passou a ser parte tão radical dela, que
passava invisível aos olhos humanos.
Somente
alguém muito especial poderia vê-lo. Teria sido, diziam, um estudante que
varava aquelas matas, que o encontrou e aprendeu com ele sobre a vida. Mas o
jovem nunca havia revelado sua localização, pois o protegia, e somente permitia
o contato quando confiava totalmente nos propósitos de alguém.
Desconfiei
seriamente que aquele peão o conhecera. Mas percebi que não me contaria nada
mais além do que havia narrado.
Depois de
ouvir o causo, não sosseguei até
conhecer o tal estudante. Vaguei muito tempo por todo o Estado, e por onde
andava, falava do assunto tentando achar uma pista.
Quando
encontrei o amigo do velho Sepé, ele já era um professor doutor em antropologia
e tinha quase quarenta anos. Consegui falar com ele, que negou veementemente
tudo e divertiu-se a minha custa.
Não me
dei por vencida e fiquei por perto e fomos tecendo amizade. Trabalhei um tempo
para ele, até que confiasse em mim e, assim, me permitisse o contato com a tal
lenda viva. Este era meu plano.
Certo
dia, num inverno dos mais intensos que tivemos, ele me disse que iríamos dar um
passeio. Que eu me preparasse para uma longa caminhada.
Partimos
com chuva e a certa altura do caminho, depois de muito andar em mata fechada, a
pequena trilha terminou e tivemos que seguir a pé. Nunca senti tanto frio, mas
não reclamei. Nos momentos mais difíceis, fazia questão de mostrar-me uma
mulher forte, do tipo que vai aos lugares onde todos pensavam que as mulheres
jamais iriam.
Chegamos
a uma cabana de um formato que eu não conhecia. Ela fora construída em terreno
mais alto. O teto era rente ao chão e para entrar descemos alguns poucos
degraus. Sobre o chão batido uma pequena fogueira ardia, o ambiente era quente
e tinha cheiro de ervas. Sentado em cima de uma espécie de mezanino estava ele.
Emocionei-me às lagrimas. Seu nome era, em língua charrua, “homem das quatro
luas”.
Ele veio
em nossa direção e aconselhou que tirássemos as roupas molhadas, nos oferecendo
vestes secas. Sentamos à beira do fogo, deu-nos chá e carne assada. O professor
e o índio falavam de assuntos que eu não tinha familiaridade, isso não me
incomodou, porque estar ali abrigada da chuva e do frio já era um presente.
Recostei-me sobre os pelegos e dormi, acordei na madrugada e os dois ainda
conversavam.
Começa
agora a história que me levou a escrever. O índio falava sobre inverno e amor,
mais que isso, sobre os deslocamentos culturais e civilizatórios. Ouviu o causo de um dos poucos sobreviventes de
seu povo, que as contava apenas uma vez, para que todos se esforçassem ao
máximo para memorizá-las. Recomendava que guardassem com cuidado, pois esses
ensinamentos poderiam salvar suas vidas.
“Certo
dia um belo jovem de cabelos e olhos claros chegou a sua aldeia, viajava a
cavalo e se mostrou muito amistoso com o povo dali. Fez várias visitas, mas
ninguém sabia de onde vinha e quem era. Apesar de lembrar um soldado
desgarrado, trazia uma flor no chapéu.
Uma índia
ainda muito jovem se apaixonou pelo gaúcho, que não parecia notá-la, quando
esta lhe oferecia comidas e bebidas assim que chegava à aldeia. Mas nada disso
escapava do olhar da tribo e principalmente do cacique. Este lhe repreendia
assim que o tal fulano ia-se embora.
Certa
vez, num inverno semelhante a este, onde o vento assobiava e gelava os ossos, o
fulano voltou e a indiazinha manteve-se a distância. Ele ali permaneceu por cerca de dois dias e
quando se foi ninguém percebeu que ela desaparecera também.
Contam os
que a encontraram congelada e coberta de flores, que teria ido com todas as
suas roupas ao caminho que o seu amor cruzaria e após horas andando abrigou-se
numa pequena cabana abandonada. Ali deitou seu chale de lã de ovelha e colou
flores em parte do seu corpo, e aguardou ao lado do fogo por algum barulho que
denunciasse a chegada dele. Ao abandonar a cabana com pressa arrastou para
perto do fogo o pala, e saiu a se exibir ao paladino, com seu corpo quase nu,
envolta nas mais coloridas flores que o inverno ainda permite. O cavalo assustado
empinou e, após dominá-lo, o tal homem branco deu meia volta e seguiu a galope.
Contorcendo-se de frio e dor, viu entre lágrimas a cabana incendiar de forma
irremediável, e correu pela floresta aos gritos para que ele a levasse. Falava
numa língua incompreensível para aquele homem, que morreria de frio se este a
deixasse ali.
Somente
dois dias após o fim das terríveis tormentas que castigaram a região, os seus
irmãos puderam encontrá-la. “Com o corpo ainda intacto, roxo e coberto pelas
flores do amor, que não a protegeram do rigor daquele inverno”.
Seguimos
viagem no dia seguinte, sem que eu tivesse coragem de dirigir palavra àquele
homem. Na despedida sussurrei apenas um adeus. Saí dali pensando que aquela
história fora para mim. Perguntei-me, durante muito tempo, o que ele queria me
ensinar, mas tinha certeza que havia inventado aquilo tudo.
Continuei
trabalhando com o doutor Eduardo por certo tempo, pesquisando o povo charrua e
aprendendo mais do que em qualquer escola que houvera passado. Ele nunca me
permitiu falar sobre o assunto e por vezes temi ter imaginado tudo aquilo.
A vida me
conduziu para outros caminhos, e no momento de me despedir, tomei coragem de
perguntar: “Eu imaginei aquela viagem que fizemos para conhecer o índio
charrua?”. Ele sorriu e disse: “Por que esta necessidade de certezas? Lembra-se
do que ele falou? Seu avô lhe contava as histórias apenas uma vez, como tu vais
viver com ela, já não é mais problema dele”.
Já mais
velha, percebi que em minhas andanças pelo mundo, movida por uma curiosidade
sem medida, eu não respeitava nenhuma ordem natural. Contabilizei inúmeros sofrimentos
desnecessários por conta disso. Compreendi que fora para mim aquela breve
história. Compreendi também que cada história traz um tanto do narrador, e
outro tanto do ouvinte, de nossas experiências e nossas intenções. Deste ponto
de vista era tudo verdade, uma verdade minha e dele.
Ficou-me
uma dúvida besta, que criei para revisitar aqueles acontecimentos, eu acho: Quantos
anos tinham, afinal, o homem das quatro luas?
Maravilhoso! <3
ResponderExcluirObrigada Suzi.
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