quinta-feira, 30 de julho de 2015





Por Manoel Herzog

Colhi muitos aprendizados do tempo em que trabalhei na indústria. O sonho da união do proletariado ali eu vi que era um tanto inatingível, no mundo corporativo os funcionários são estimulados à delação, à competição, à aniquilação do concorrente. Mas, a essência humana, que é em última instância boa, prevalece.

Peninha era um menino humilde. Levava o apelido por conta da mancha branca que tinha na cabeça, uma espécie de vitiligo que marcou o cabelo.Trabalhou pela empreiteira, logo que veio do Piauí encarou as bocas mais pobres, bateu pá, carregou saco. A gente da fábrica era tida pelo pessoal da empreiteira como modelo, sua aspiração era serem efetivados, entrar pra companhia também, subir um degrau. Como o pessoal bem empregado era visto com carinho, e o amor é regido pela física lei de ação-reação, também os víamos, se não com amor, com piedade - afinal, não representavam concorrência.

Luizão Mão-de-Onça era um negro descomunal. Velho operador chefe, o tamanho e a força física faziam contraponto com sua bondade. Uma espécie de Pai-Tomás, usava um dissonante suspensório e suíças, dando-lhe um aspecto de velho pastor. Ajudava todos, até porque ninguém lhe podia fazer concorrência, não tinha mais pra onde subir e estava em vias de aposentar. Mas acho que mesmo se alguém lhe fosse ameaça a bondade prevalecia.

A comida do povo da empreiteira não era a mesma da gente funcionária. Tínhamos direito a salada, sopinha, filé e quetais. Bondoso que era, Luizão naquela noite pediu um marmitex a mais. De manhã, quando o povo da empreiteira chegou, presenteou Peninha, que ficou feliz deveras com o mimo.
Tião, um sacripanta, que via tudo, depois que Luizão rendeu foi ao Peninha e falou, Ae, ein. Tu tá ligado que esse negão é viado, né?

A princípio Peninha ficou indignado, como podia aquele canalha falar assim de um homem feito Luizão. Mas Tião, pelo puro prazer de troçar de um humilde, que nada de medo lhe podia representar, sustentou a falácia e me pediu confirmação, Não é, Poeta?

Não sei por que fiz que sim. Peninha não representava nenhum perigo, mas incomoda ver o povo da empreiteira comendo bem igual à gente. Num meneio afirmativo de cabeça simulei um sorriso irônico, para dar maior credibilidade à troça.

Luizão Mão-de-Onça, um espírito verdadeiramente elevado, não ficou ruminando a bondade feita. Na noite seguinte nem lembrava, mas o lancheiro, quando veio deixar as marmitas, perguntou se queria mais uma, e o fez lembrar. Sim, deixe mais uma aí. De manhã regalou o Peninha. Tião e eu olhamos de soslaio e demos, pro Peninha, um sorriso cúmplice.

Assim seguiram as manhãs, à diferença que, numa delas, Peninha nos devolveu o cúmplice sorriso, com uma piscadela. Ficamos de longe olhando ele se dirigir ao Mão-de-Onça.

Seu Luiz, sabe o que que é, é que eu tava precisando aí de uns duzentos real. Puxa, meu filho, hoje pra falar a verdade eu nem tenho. Mas olha, daqui a três dias é o pagamento, dá pra você esperar?
Peninha fez uma cara contrariada. Mas olhou Luizão bem nos olhos e mandou. Dá sim, claro que dá. Me arrume lá esse dinheiro que depois, ó.

E, levantando a pelve num ato bem próximo à dança de Michael Jackson, deu três batidinhas no púbis. Naquele dia eu vi o poder que tem a patada de uma onça.

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