Leitor na livraria Shakespeare and Company, em Paris (Foto: Márcia Costa) |
Por Manoel Herzog
A síndrome de colonização, atualmente rebatizada "viralatice", nos legou a nós, brasileiros, o péssimo uso de dois sinais gráficos: a crase e o apóstrofo.
O mau uso da crase, e está na moda se o denunciar, como fez Caetano, devemos à influência francesa. A crase é um sinal gráfico que indica a junção de duas vogais. É representada pelo signo do acento grave, que existiu em português até a penúltima reforma ortográfica. Indicava abertura numa vogal anterior a proparoxítonos, por exemplo, "enciclopèdicamente". Abolido o acento grave do português, ficou o sinal indicando a ocorrência de crase. Mas a única vogal que faz junção, na verdade, é o "a". A crase ocorre quando se junta a preposição “a” ao artigo definido feminino: "`à", "às", "àquele", etc. Por conclusão lógica se toma uma primeira regra, que não ocorre crase antes de substantivo masculino.
Vamos à exceção: "Lagosta à Thermidor". Tem crase, a par de Thermidor ser macho. Isto porque ocorre a elipse no caso, está oculta a palavra "moda", é "à moda do Thermidor".
O idioma francês conserva o acento grave. Em França se fala "Je vais à Paris", "Je vais à Cubatão". Serviço “à la carte”, por exemplo, prescindiria da crase porque "la" é o artigo feminino deles. Mas franceses usam o acento grave, que pra eles não indica a crase. Ora, desta confusão nos restaurantes, e é notável a influência francesa na gastronomia e na cultura, gerou-se a confusão que faz com que a maioria dos homens sexualmente maduros se vejam rechaçados por mulheres cultas, posto que o mau-uso da crase é impeditivo de relações amorosas, o que é muito grave. Acentuadamente grave.
Já com o apóstrofo, a culpa é da influência norteamericana. O negócio já é confuso no nome, não se confunda apóstrofo, o sinal gráfico, com apóstrofe, a figura de linguagem. Pois bem, nós lusófonos usamos o apóstrofo pra indicar a supressão de uma vogal. Os poetas faziam demais nos tempos do Parnaso, pra adequar a métrica dos versos. Lusos comem mais vogais que brasileiros, e assim por aqui o apóstrofo perdeu um tanto do sentido. Isso até o Império do Mal nos impor sua tirania. Como temos essa sina antropofágica de imitar o conquistador, lá se vão os brasileiros enfiar apóstrofo em tudo, feito americanos e ingleses.
No idioma de Shakespeare, apóstrofo indica o possessivo. Assim, o "Cuca's Bar", simpático nome de um estabelecimento onde me embriaguei no Recife, bem melhor se ficasse "Bar de Cuca". Seu Cuca não laborou em grave erro além da viralatice, o sentido estava certo. Vêem-se, contudo, bizarrices do tipo "Vera & Cleide Restaurante´s", o que significaria que o senhor Restaurante é feliz proprietário de um Vera & Cleide. No prédio em que trabalho há uma sala comercial "Benito e Amanda Podólogo's". Todo dia medito, meio sonado, enquanto subo as escadas numa ressaca infeliz, o que pode significar esta expressão. Penso, em meu delírio que o Podólogo é pessoa que ali exerce a função de Benito (em horário comercial) ou de Amanda (a drag-queen em que se transforma de noite).
Em suma, não se deve, na dúvida, utilizar crase ou apóstrofo, sob pena de se fazerem tais vergonhas. Tudo o que há por dizer escrito é possível com 22 sinais gráficos, chamado letras. Pontos, aspas, crases e o mais são redundâncias.
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