terça-feira, 8 de março de 2016

Natalia Ginzburg

Por Marina Ruivo


“Atirei em seus olhos.” Paro a leitura, devo ter pulado uma das palavras, a narradora deve ter atirado algo nos olhos do homem. Volto, releio, vejo que não pulei nada, nenhuma palavra. Mas talvez no próximo parágrafo ela vá revelar que atirou uma pedra, uma xícara, um pano, qualquer coisa nos olhos do sujeito. Não. Ela está preparando um chá para ele. Claro que não foi tiro, ela até está cuidando dele, provavelmente se arrependeu do que lhe lançou aos olhos. 

Mas não. Logo vejo que isso é lembrança das ações imediatamente anteriores ao atirar o algo ainda misterioso. Prossigo a leitura e tenho a confirmação. Ela realmente disparou – perdoem-me o pleonasmo – um tiro de revólver nos olhos desse homem que não sabemos ainda quem é, é apenas um “ele”. Não só não temos a menor ideia de quem seja (e já começamos a achar que, seja o que quer que ele tenha sido, não é mais), como não podemos supor nada do que ele terá feito para que ela, essa narradora que se apresenta assim tão brutalmente e nos lança em meio a um ponto tão dramático da ação que nos vai contar – e que agora queremos acompanhar de todo jeito, não há o menor risco de fecharmos o livro – disparasse assim nele. Não resisto a transcrever aqui o início do romance:

Disse-lhe: —Diga-me a verdade — e ele disse: — Que verdade? — E desenhava rapidamente algo no seu livrinho de apontamentos e me mostrou o que era: um trem comprido com uma densa nuvem de fumaça preta e ele, que se debruçava na janela e acenava com o lenço.
Atirei em seus olhos.
Dissera-me para preparar-lhe a garrafa térmica para a viagem. Fui à cozinha e fiz o chá, coloquei o leite e o açúcar e o despejei na garrafa térmica, rosqueei bem o copinho e depois voltei para o escritório. Então, me mostrou o desenho e eu peguei o revólver na gaveta de sua escrivaninha e atirei nele. Atirei em seus olhos.
Mas há muito tempo já vinha pensando que mais cedo ou mais tarde faria isso.

E é no sexto parágrafo, ainda na primeira página, que começamos a saber algo sobre a relação deles, quando ela enuncia, como se fosse a informação mais irrevelante: “Fomos marido e mulher por quatro anos”. Ela não diz “o meu marido”, “meu esposo”, nem “meu companheiro”. Tampouco que “haviam se casado há quatro anos”, nem qualquer uma das muitas possíveis variações. O modo como ela fala traz a estranheza que, começamos a desconfiar, desde sempre parece haver existido entre essas duas pessoas. E o parágrafo traz ainda mais informações, breves e de uma precisão penetrante: “Dizia que queria me deixar, mas depois nossa filha morreu e assim ficamos juntos. Ele queria que tivéssemos outro filho, dizia que me faria bem, assim fazíamos amor frequentemente nos últimos tempos. Mas não conseguimos ter outro filho.”

Ela não fala do amor – que durante a narração saberemos que só houve de um dos lados desse casal unido de forma bastante estranha –, nem do prazer, que não há nem nunca houve para nenhum dos dois. A narradora é uma mulher que, vamos descobrindo, vivenciou intenso sofrimento. Mas, ao recordar sua história, em bancos de praças e em cafés, logo depois de ter matado o marido, não manifesta nenhum traço de autocomiseração. Não está arrependida nem se culpa pelo que fez. Ela apenas percorre sua história, imaginando que quando for à polícia terá que contá-la toda, pois dizer apenas “Acabo de matar meu marido” não traria um milionésimo de informação. Nem se trata de justificar o feito, mas de situar, contextualizar, delinear.

O modo como essa mulher conheceu o homem mais velho a quem assassinou é curioso porque ela não se apaixonou nem logo de cara nem com a convivência, mas sim quando ele desapareceu de sua vida pela primeira vez. E ela, que até então, aos 26 anos, nunca fora desejada por homem nenhum, projetava-se pela primeira vez sendo adorada pela primeira vez, deliciava-se ao imaginar como ele gostaria de casar com ela, coisa que não aconteceria, pois em algum momento ele lhe apresentaria a um amigo mais jovem, que então sim seria seu marido. No entanto é o corte repentino dessa projeção que a inquieta e a faz desejar que ele reapareça, o que por sua vez faz que ela acredite que gostava dele, muito embora tivesse repugnância ao pensar nos contatos íntimos que sabia que teria que ter com ele caso se casassem. A união enfim acontece, mas num contexto completamente diferente do que ela havia imaginado, e o casamento desde o início é uma farsa, por razões que não me cabe expor aqui para não entregar o jogo. 

É impressionante que "Foi assim" tenha sido escrito quando Natalia Ginzburg era tão nova – e havia passado pelo trauma de perder o marido há pouquíssimo tempo, morto numa prisão pelos fascistas. O livro é de uma maturidade incrível e apaixonante, e eu, que pouco tempo antes de lê-lo havia pegado nas mãos a recente edição do Pequenas virtudes, também da autora, saí correndo para buscar meu exemplar, fascinada pela escrita de Ginzburg. 

No texto de apresentação à edição de "Foi assim", Edson Roberto Bogas Garcia diz que a escritora teria indicado o romance para o público feminino – e, de fato, Foi assim me parece extremamente profundo na devassa do sofrimento histórica e culturalmente imputado às mulheres. O modo como ela representa a vivência da maternidade por sua protagonista, por exemplo, que se angustia muito e ao mesmo tempo procura concentrar toda e qualquer realização de sua vida nessa esfera, é extremamente forte – e, sim, atualíssimo, ainda. Mas, como Edson Garcia sustenta também, "Foi assim" não deixa de trazer o sofrimento pela ótica masculina, figurado em Alberto, o marido morto. Ele não era um vilão, não batia na mulher, nem nada dessas coisas que poderíamos imaginar ao saber que foi morto pela esposa. Ele não era nem mesmo “mau”. A questão é que ele tinha também a sua própria e grande carga de sofrimento, que o levava para longe da mulher, cada vez mais, e não para perto. E Natalia Ginzburg o constrói como um personagem bastante complexo e nem um pouco caricato, fazendo de seu romance uma narrativa que fala das mútuas incompreensões e dos sofrimentos potencializados quando se age em desconformidade ao que se sente.

Natalia é fabulosa e apaixonante, e seu romance é uma aula magistral para todos aqueles que querem mergulhar nas águas da ficção. Livro que peguei emprestado na biblioteca da faculdade em que estava dando aula e que renovei por todas as vezes a que tinha direito, para enfim devolvê-lo com tristeza e com a convicção de que preciso comprá-lo, porque é daqueles livros para se reler muitas vezes, ao longo da vida. Livro-aula mesmo, completa, só precisamos saborear e atentar para cada uma das palavras que o compõem (isso na releitura, claro, mas o prazer foi tão grande que eu comecei e voltei para reler, e depois continuei, e reli e fui assim até o final), e para a estrutura que, ao terminar de lê-lo, salta à nossa vista, possibilitando que unamos fim e começo e vislumbremos a obra toda como se fosse uma pintura, como dizia o crítico canadense Northrop Frye.

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