O assunto é perigoso e eu confesso meu receio desde já. Falar em barata, ainda mais em mulher e barata, é algo que ficou marcado e registrado em nossa literatura. Daí parece que qualquer coisa que envolva esses dois termos – a não ser, talvez, alguma piada – vai ser considerado descendente de, influenciado por, ou até mesmo arremedo de imitação de. Com todo o respeito a Clarice, porém, antecipo que o que se segue não tem nada a ver com sua consagrada obra. É realidade mesmo e bem chã.
A
única coisa é que eu havia ficado, até o dia de hoje, imersa em uma longa e
quase inacreditável temporada sem que absolutamente nem uma baratinha sequer aparecesse
em casa. Consegui passar os últimos outono, inverno, primavera e quase, mas
quase mesmo, este verão todinho sem a visita de um desses insetos que nos
aterrorizam de uma maneira que só pode ser considerada ancestral. Moro num
condomínio de vários predinhos de três andares que é bastante visitado por elas
no calor, mesmo com as dedetizações constantes. O térreo dos edifícios vira e
mexe nos surpreende com as amiguinhas lá, semimortas mas sempre prontas para
assustar e enojar. E eu sobrevivendo invicta.
Já
nem estava exatamente feliz por isso, porque esquecida de atentar para essa vitória
e também porque, a cada vez que ameaçava passar por minha cabeça o fato, eu
rapidamente desviava, a fim de não atrair o azar. Nessas coisas sempre surge
uma superstiçãozinha tola, uma visão mais mística do mundo de que as coisas e o
pensamento estão de algum modo misterioso relacionados, de que as palavras são
espécies de palavras de poder, tipo Abracadabra ou Faça-se a luz etc. Acho que
tem relação com o lado primitivo desse bicho que, hoje de manhã, resolveu furar
seu interregno.
Não
sei por onde entrou. As duas últimas visitantes tinham vindo voando,
interrompendo uma noite em que eu lia no quarto com as janelas abertas. Esta
não. Surpreendeu-me com sua presença em forma de um rastro escuro que vi com o
canto do olho, e difuso, porque eu estava sem óculos. Eu saía do box, tinha
acabado de fechar o chuveiro. Rápido catei os óculos em cima da pia e os lancei
ao rosto, tortos mas trazendo nitidez suficiente para que eu visse o tamanho da
bicha que nesse momento resolveu entrar no box: repugnantemente imensa, gorda,
explodindo saúde e fúria. Não era preta como tinha me parecido antes, mas de um
marrom-claro que por pouco não se dourava. Talvez fosse até um espécime
bastante desejável para seus pares.
Quando
vi bem o tamanho e o local pra onde se dirigia, não consegui fazer outra coisa
senão lançar mão da toalha e fugir do banheiro, sem mesmo calçar os chinelos
nos pés molhados. Não, não vá pensar que dei um gritinho daqueles de novela,
isso não. Mas bati a porta do banheiro na cara dela, na estúpida e irrefletida
ilusão de que ficasse quietinha, satisfeita em ter um cômodo todo da casa à
disposição. Só que eu ainda teria um problema mesmo se ela me obedecesse. Eu
tinha que matá-la.
Meu
filho ainda é pequeno e, ao me ver sair correndo e esbravejar a história da
barata, ficou todo atiçado, achando superlegal uma coisa assim logo de manhã,
mas não legal o suficiente para que ele pegasse um chinelo ou uma vassoura e fosse
dar um fim no inseto. O que ele queria era assistir à matança, não praticá-la.
Acontece que tenho uma ojeriza tão grande desse bicho que não tenho condições
de jogar sobre ela o chinelo. Não sei se é a gosminha branca que sai quando ela
é atingida, ou se é medo de que voe em minha direção, sei que consegui esse
gesto de coragem poucas vezes. Felizmente, para pessoas como eu a indústria
criou sprays de veneno, e eu tenho um que diz matá-la com extrema rapidez.
Com
raiva da invasão de meus domínios e vontade de sair correndo, fui à área de
serviço, peguei veneno e mandei filho e gato ficarem na cozinha, de porta
fechada, enquanto eu ia pra guerra. Subi num banquinho do lado de fora do box e,
por cima da porta de vidro, apertei o botão do jato várias vezes. Ela se mexia
como se nada. A porcaria parecia estar com o bico aplicador quebrado, saí
correndo de novo pra área e peguei um novo frasco, desta vez tendo coragem de
abrir a porta do box para borrifar bem pertinho e não correr o risco de errar.
Agora sim, eu via o veneno saindo, venceria logo, a vitória era mais que certa.
Porém,
sem que eu pudesse visualizar o trajeto, em segundos ela surgiu, como que
transmutada, na parede em frente à pia, bem mais perto de mim. Impetuosamente apertei
o veneno, mas ela escapou por debaixo da porta e correu pro meu quarto,
enfiando-se debaixo da cama. Parei por alguns segundos e me esforcei para
controlar o tremor nas mãos. Ela não ia ficar viva no meu quarto. Ia morrer de
todo jeito. Consegui ler as instruções do rótulo do produto enquanto gato e
filho vinham atrás, não querendo perder nenhuma cena do combate: aplicar o jato
em todas as direções no ambiente em que está o inseto, de três a seis segundos,
sem parar. Esperar vinte minutos para só depois deixar entrar pessoas e animais
domésticos no recinto.
Fechei
a porta do quarto já com mais calma e segurança. Lá dentro éramos eu e ela. Eu
não tinha a menor chance de perder mais aquele combate, a desproporção de
forças era absoluta, mas evidente que não chegava nem perto de dar pena.
Mantive o botão do frasco pressionado sem contar os segundos. E se não tivesse
dado nem mesmo três? Por garantia, apertei de novo e contei mentalmente, bem
devagar. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove. Mais três
segundos de garantia não seriam um problema.
Saí
do quarto com uma quase tranquilidade. Sabia que ela morreria, mas será que
teria forças pra se enfiar no meu guarda-roupa antes disso? Ou na minha
estante? Depois de meia hora entrei no quarto, íamos sair, eu precisava me
arrumar. Vi de longe que o cadáver estava no chão, entre a janela e a cabeceira
da cama. Não quis recolher os restos na hora, o ideal era deixá-la mais um
pouco, podia ainda estar estrebuchando.
Deixei-a
lá, fechada. Cinco horas depois, ao voltar pra casa, sabia que ainda faltava
essa parte. Me muni de um grosso pedaço de papel higiênico e cheguei perto
dela: as patas ainda se mexiam, lentas, mas insistentes. Taquei-lhe o chinelo
em cima para que parassem e eu pudesse recolhê-la, e no vermelho da sola que a acertava
é que reconheci minha crueldade, minha covardia. Eu a massacrara de veneno, ela
não tinha chance mas ainda resistia, desse modo incrível das baratas, e em sua
cabeça talvez ainda acreditasse possível a sobrevivência. De uma hora pra
outra, quando ela, talvez já esgotada mas ainda esperançosa, pensava que o
inimigo nem mais se lembrava dela, ele – eu – voltava com algo grande que surgia
por cima e a esmagava.
Mas
não de vez. Deixei o chinelo algum tempo e retirei-o. As patas, ainda mais
vagarosas, se mexiam. Ia ter que pegá-la mesmo assim, mas o nojo de sentir
através do papel aquele resto de vida, somado à posição difícil em que ela
estava (atrás do tubo do ar-condicionado, junto à janela, com a cabeceira da
cama impedindo que eu a arrastasse com a vassoura) fizeram que eu a deixasse lá
ainda. Fechei a porta e vim pra sala, escrever estas linhas. Que ao menos ela
pudesse morrer sua morte com dignidade.
PS:
À altura em que sai este texto, nunca é demais dizer que ela já foi embora faz
tempo da minha casa, tendo descido pelos encanamentos originados do vaso
sanitário.
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