quarta-feira, 16 de março de 2016




Por Marina Ruivo

O assunto é perigoso e eu confesso meu receio desde já. Falar em barata, ainda mais em mulher e barata, é algo que ficou marcado e registrado em nossa literatura. Daí parece que qualquer coisa que envolva esses dois termos – a não ser, talvez, alguma piada – vai ser considerado descendente de, influenciado por, ou até mesmo arremedo de imitação de. Com todo o respeito a Clarice, porém, antecipo que o que se segue não tem nada a ver com sua consagrada obra. É realidade mesmo e bem chã.

A única coisa é que eu havia ficado, até o dia de hoje, imersa em uma longa e quase inacreditável temporada sem que absolutamente nem uma baratinha sequer aparecesse em casa. Consegui passar os últimos outono, inverno, primavera e quase, mas quase mesmo, este verão todinho sem a visita de um desses insetos que nos aterrorizam de uma maneira que só pode ser considerada ancestral. Moro num condomínio de vários predinhos de três andares que é bastante visitado por elas no calor, mesmo com as dedetizações constantes. O térreo dos edifícios vira e mexe nos surpreende com as amiguinhas lá, semimortas mas sempre prontas para assustar e enojar. E eu sobrevivendo invicta.

Já nem estava exatamente feliz por isso, porque esquecida de atentar para essa vitória e também porque, a cada vez que ameaçava passar por minha cabeça o fato, eu rapidamente desviava, a fim de não atrair o azar. Nessas coisas sempre surge uma superstiçãozinha tola, uma visão mais mística do mundo de que as coisas e o pensamento estão de algum modo misterioso relacionados, de que as palavras são espécies de palavras de poder, tipo Abracadabra ou Faça-se a luz etc. Acho que tem relação com o lado primitivo desse bicho que, hoje de manhã, resolveu furar seu interregno.

Não sei por onde entrou. As duas últimas visitantes tinham vindo voando, interrompendo uma noite em que eu lia no quarto com as janelas abertas. Esta não. Surpreendeu-me com sua presença em forma de um rastro escuro que vi com o canto do olho, e difuso, porque eu estava sem óculos. Eu saía do box, tinha acabado de fechar o chuveiro. Rápido catei os óculos em cima da pia e os lancei ao rosto, tortos mas trazendo nitidez suficiente para que eu visse o tamanho da bicha que nesse momento resolveu entrar no box: repugnantemente imensa, gorda, explodindo saúde e fúria. Não era preta como tinha me parecido antes, mas de um marrom-claro que por pouco não se dourava. Talvez fosse até um espécime bastante desejável para seus pares.

Quando vi bem o tamanho e o local pra onde se dirigia, não consegui fazer outra coisa senão lançar mão da toalha e fugir do banheiro, sem mesmo calçar os chinelos nos pés molhados. Não, não vá pensar que dei um gritinho daqueles de novela, isso não. Mas bati a porta do banheiro na cara dela, na estúpida e irrefletida ilusão de que ficasse quietinha, satisfeita em ter um cômodo todo da casa à disposição. Só que eu ainda teria um problema mesmo se ela me obedecesse. Eu tinha que matá-la.

Meu filho ainda é pequeno e, ao me ver sair correndo e esbravejar a história da barata, ficou todo atiçado, achando superlegal uma coisa assim logo de manhã, mas não legal o suficiente para que ele pegasse um chinelo ou uma vassoura e fosse dar um fim no inseto. O que ele queria era assistir à matança, não praticá-la. Acontece que tenho uma ojeriza tão grande desse bicho que não tenho condições de jogar sobre ela o chinelo. Não sei se é a gosminha branca que sai quando ela é atingida, ou se é medo de que voe em minha direção, sei que consegui esse gesto de coragem poucas vezes. Felizmente, para pessoas como eu a indústria criou sprays de veneno, e eu tenho um que diz matá-la com extrema rapidez.

Com raiva da invasão de meus domínios e vontade de sair correndo, fui à área de serviço, peguei veneno e mandei filho e gato ficarem na cozinha, de porta fechada, enquanto eu ia pra guerra. Subi num banquinho do lado de fora do box e, por cima da porta de vidro, apertei o botão do jato várias vezes. Ela se mexia como se nada. A porcaria parecia estar com o bico aplicador quebrado, saí correndo de novo pra área e peguei um novo frasco, desta vez tendo coragem de abrir a porta do box para borrifar bem pertinho e não correr o risco de errar. Agora sim, eu via o veneno saindo, venceria logo, a vitória era mais que certa.

Porém, sem que eu pudesse visualizar o trajeto, em segundos ela surgiu, como que transmutada, na parede em frente à pia, bem mais perto de mim. Impetuosamente apertei o veneno, mas ela escapou por debaixo da porta e correu pro meu quarto, enfiando-se debaixo da cama. Parei por alguns segundos e me esforcei para controlar o tremor nas mãos. Ela não ia ficar viva no meu quarto. Ia morrer de todo jeito. Consegui ler as instruções do rótulo do produto enquanto gato e filho vinham atrás, não querendo perder nenhuma cena do combate: aplicar o jato em todas as direções no ambiente em que está o inseto, de três a seis segundos, sem parar. Esperar vinte minutos para só depois deixar entrar pessoas e animais domésticos no recinto.

Fechei a porta do quarto já com mais calma e segurança. Lá dentro éramos eu e ela. Eu não tinha a menor chance de perder mais aquele combate, a desproporção de forças era absoluta, mas evidente que não chegava nem perto de dar pena. Mantive o botão do frasco pressionado sem contar os segundos. E se não tivesse dado nem mesmo três? Por garantia, apertei de novo e contei mentalmente, bem devagar. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove. Mais três segundos de garantia não seriam um problema.

Saí do quarto com uma quase tranquilidade. Sabia que ela morreria, mas será que teria forças pra se enfiar no meu guarda-roupa antes disso? Ou na minha estante? Depois de meia hora entrei no quarto, íamos sair, eu precisava me arrumar. Vi de longe que o cadáver estava no chão, entre a janela e a cabeceira da cama. Não quis recolher os restos na hora, o ideal era deixá-la mais um pouco, podia ainda estar estrebuchando.

Deixei-a lá, fechada. Cinco horas depois, ao voltar pra casa, sabia que ainda faltava essa parte. Me muni de um grosso pedaço de papel higiênico e cheguei perto dela: as patas ainda se mexiam, lentas, mas insistentes. Taquei-lhe o chinelo em cima para que parassem e eu pudesse recolhê-la, e no vermelho da sola que a acertava é que reconheci minha crueldade, minha covardia. Eu a massacrara de veneno, ela não tinha chance mas ainda resistia, desse modo incrível das baratas, e em sua cabeça talvez ainda acreditasse possível a sobrevivência. De uma hora pra outra, quando ela, talvez já esgotada mas ainda esperançosa, pensava que o inimigo nem mais se lembrava dela, ele – eu – voltava com algo grande que surgia por cima e a esmagava.

Mas não de vez. Deixei o chinelo algum tempo e retirei-o. As patas, ainda mais vagarosas, se mexiam. Ia ter que pegá-la mesmo assim, mas o nojo de sentir através do papel aquele resto de vida, somado à posição difícil em que ela estava (atrás do tubo do ar-condicionado, junto à janela, com a cabeceira da cama impedindo que eu a arrastasse com a vassoura) fizeram que eu a deixasse lá ainda. Fechei a porta e vim pra sala, escrever estas linhas. Que ao menos ela pudesse morrer sua morte com dignidade.


PS: À altura em que sai este texto, nunca é demais dizer que ela já foi embora faz tempo da minha casa, tendo descido pelos encanamentos originados do vaso sanitário.

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