terça-feira, 1 de março de 2016




Por Marina Ruivo


Ao lançar o livro Geração armada – Literatura e resistência em Angola e no Brasil (Alameda Editorial), em que faço um estudo comparado entre o romance A geração da utopia, do angolano Pepetela, e o testemunho Viagem à luta armada, de Carlos Eugênio Paz, umas das coisas que pude perceber é que aumentou bastante o número de pessoas que conhecem ao menos de nome o escritor angolano, se pensado em relação ao momento em que iniciei o trabalho com as narrativas dele, no ano de 1998.

Mas notei também que ainda são muitos os que o desconhecem por completo e,  ainda que seus livros sejam publicados no Brasil há bastante tempo (atualmente sua editora aqui é a Leya), seu nome é menos divulgado que os das gerações de escritores surgidas depois dele, como José Eduardo Agualusa e Ondjaki. Talvez isso se dê porque estes dois últimos angolanos morem boa parte do tempo no Brasil, enquanto Pepetela reside na capital de seu país, mas isso é apenas uma conjectura. 

Pepetela é um escritor consagrado internacionalmente, traduzido para mais de dez idiomas e vencedor de diversos prêmios, dentre eles o Camões, em 1997. Sua obra é não apenas fundamental para o conhecimento da literatura produzida em Angola, como também para o conhecimento da própria história angolana, passada e presente, tendo em vista seu trabalho com a intersecção literatura/história. Ademais, sua produção é de qualidade literária extraordinária. Pepetela é um escritor de mão cheia, que cria narradores, personagens, espaços e tramas com um domínio e uma sabedoria verdadeiramente admiráveis.

Uma curiosidade que sempre surge quando se fala nele é a origem do nome literário que adotou. Trata-se de uma palavra da língua (e não dialeto, como muitas vezes se costuma pensar) umbundo, uma das muitas faladas no território angolano. Seu significado é “pestana” e ela surgiu como codinome na guerrilha, para só depois passar a ser usado como assinatura de suas muitas obras. Pestana é um dos sobrenomes do autor, nascido Arthur Carlos Maurício Pestana dos Santos e que, para surpresa de muitos, não é negro. É branco, mas isso não tem nada que ver também com o estereótipo que poderíamos formar mentalmente: se é branco, então deve ser ou ter sido explorador etc. etc. Longe disso. Se nasceu em uma família socialmente mais favorecida em relação aos negros que compunham a maioria da população angolana, e pôde estudar e concluir o ensino superior, Arthur Carlos engajou-se na luta pela independência de Angola desde cedo, lutando não apenas pelo fim do domínio colonial português, mas pela instauração do socialismo no novo país, visando ao fim de qualquer desigualdade.  

Sua cidade é Benguela, a capital da província de mesmo nome, no oeste de Angola, onde nasceu em 29 de outubro de 1941. Com família fixada em Angola há muitas gerações, os ascendentes paternos distantes provinham de Portugal, enquanto os maternos vinham de Pernambuco, no Brasil. A casa em que o menino Arthur Carlos cresceu localizava-se na chamada “fronteira do asfalto”, porque logo adiante de sua rua começava o que aqui diríamos “favela” – ou, sendo politicamente corretos, “comunidade” – e lá era chamado de “sanzala”. Em Luanda, seria o “musseque”, importante cenário da literatura angolana, assim como nossa favela entrou na música e na literatura. 

Arthur Carlos se encontrava não apenas visualmente perto da pobreza, mas também convivia com crianças brancas e negras indistintamente, inclusive pelo fato de Benguela ser uma cidade em que o número de mestiços sempre foi grande. Crescendo nesse ambiente, foi no início da adolescência que começou a se dar conta de que havia diferenças entre os amigos que moravam do lado do asfalto e os que moravam nas sanzalas, e que aqueles tinham a vida bem mais fácil que estes. Para tal, foram importantes as leituras, não só de obras literárias – e seu pai tinha uma boa biblioteca – como também de obras de filosofia, história e sociologia, passando por autores socialistas utópicos e anarquistas, as quais eram emprestadas por um tio do garoto. O menino lia e, ainda que não entendesse muitas das coisas, de alguma maneira ia olhando cada vez mais atentamente para o mundo de tantas diferenças em que vivia.

Outro estímulo importante que recebeu em sua trajetória foi o de um professor, o padre Noronha, isso quando já tinha rumado para o Lubango, em 1955, para poder continuar a estudar. Foi lá, no Liceu Diogo Cão, um colégio interno de padres maristas, que Arthur foi ganhando consciência da existência do racismo e das desigualdades. Conheceu padre Noronha em 1957, e ele lhe falava da luta guerrilheira que os cubanos vinham travando contra a ditadura de Batista e defendia a necessidade da independência de Angola.

Em 1958, Arthur Carlos foi para Lisboa, para prosseguir estudando, pois nas colônias não havia instituições universitárias. De início, matriculou-se no curso de Engenharia do Instituto Superior Técnico, porém logo o largou e passou para História, na Faculdade de Letras de Lisboa. Em Lisboa, participou de várias organizações de estudantes e começou a escrever, publicando contos na revista Mensagem, uma publicação da CEI (Casa dos Estudantes do Império). Abro aqui um rápido parêntese para falar da CEI, por sua importância cultural e política para os movimentos de libertação das colônias portuguesas. Formada a partir das Casas de Angola, Moçambique e Cabo Verde, em junção promovida pelo regime salazarista, que temia que a existências das várias casas de apoio aos estudantes fossem um estímulo ao nacionalismo e ferissem a ideia de um Portugal “uno e indivisível”, com suas “províncias ultramarinas”, a CEI acabou sendo um tiro pela culatra do governo. Os vários jovens vindos das colônias nela se encontravam e trocavam ideias e apoios para a causa das independências. Na CEI, travavam ligações inclusive com a oposição portuguesa, sobretudo com o MUD Juvenil (Movimento Unidade Democrática – Juvenil) e com o PCP (Partido Comunista Português). As atividades da Casa eram diversas, passando pela assistência social e material aos jovens das colônias, e pela promoção de atividades culturais, área em que foi bastante relevante. A produção cultural e a reflexão e ação política caminhavam lado a lado, de forma muito semelhante ao que também se dava no espaço das colônias. Encerrando o parêntese, é preciso dizer que a passagem de Pepetela pela CEI, entre o finalzinho dos anos 1950 e o princípio dos 60, foi um período muito importante para sua trajetória, ainda que ele já tenha saído de Angola movido pela ideia da necessidade de luta pela independência. 

Luta esta que ganhou a forma armada em 1961, ano em que o escritor ainda estava em Lisboa. Com o início da guerra, o regime salazarista passou a convocar cada vez mais homens para lutar em Angola, dando especial preferência aos que haviam nascido nas próprias colônias. Assim, Pepetela sabia que seria convocado, rumando para Paris antes disso. Lá ele ficou por seis meses, vivendo em Belleville, trabalhando como faxineiro em uma tipografia, e lendo o máximo de obras que pôde, de autores como Boris Vian, André Gide, Paul Vaillant, André Malraux e Jean-Paul Sartre.

No ano de 1963 ele já estava em Argel, capital da Argélia, país que no ano anterior havia conseguido sua independência, depois de uma guerra longa. Foi lá que Pepetela concluiu seu curso universitário, formando-se em Sociologia. Em Argel, junto com os amigos Adolfo Maria, Henrique Abranches, João Vieira Lopes e Kasesa, fundou o CEA (Centro de Estudos Angolanos), que tinha como objetivos a pesquisa e a produção de documentos e textos sobre Angola, os quais poderiam, inclusive, ser utilizados junto aos militantes do Movimento Popular de Libertação de Angola, o MPLA, que já se encontrava na guerrilha. Além disso, os textos produzidos tinham também a finalidade de auxiliar na divulgação da causa do MPLA no exterior.

Argel foi ainda a cidade em que Pepetela escreveu sua primeira narrativa longa, Muana Puó. Era o ano de 1969 e ele, a partir da fotografia de uma máscara tradicional dos tchokue, de nome Muana Puó, criou seu enredo, utilizando-se da alegoria de morcegos dominados por corvos a fim de denunciar a colonização e falar da luta de libertação, desenhando os contornos da utopia revolucionária para a nação livre. 

Ainda em 1969, Pepetela, que há tempos pedia sua integração às fileiras da luta guerrilheira, foi finalmente recrutado para a Frente de Cabinda, um enclave ao norte do país, na chamada Segunda Região Político-Militar do MPLA. Na guerrilha, atuou não só como combatente, mas como professor e responsável pelas escolas que o Movimento criava, além de continuar escrevendo, tendo finalizado seu romance Mayombe em 1971.

Pepetela assumiu vários cargos de direção no Movimento, sobretudo ligados às áreas da Educação e da Cultura, e, em 1976, um ano depois da Independência (em 11 de novembro de 1975), assumiu o posto de Vice-Ministro da Educação, em que permaneceu até 1982, quando se afastou da política governamental e passou a atuar como escritor e como professor universitário. 

Dentre suas narrativas, que continuam a ser escritas e publicadas, pois o autor está plenamente na ativa, comento aqui apenas brevemente A geração da utopia, romance lançado em 1992 que realiza um balanço crítico da trajetória de luta dessa geração de que participou com tanto ardor Pepetela, mostrando os descaminhos do projeto revolucionário depois de conseguida a vitória da Independência e assinalando, quase (mas apenas quase) sem esperanças, a necessidade de insistência no sonho e na utopia.



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