quarta-feira, 16 de março de 2016

 Joaquim Marques, Letícia Barreto e Maria Radicce fazem intervenções na fachada da Galeria Fernanda Monteiro.

Por Márcia Costa


Em tempos de intensos fluxos de mercadorias, ideias e pessoas, das convivências frustradas que geram guerras declaradas ou veladas, cada vez mais somos convidados a refletir sobre o nosso “transitar” no mundo. Hoje que a compaixão e a empatia demandam tanto espaço no dicionário contemporâneo, vale o questionamento se caminhamos realmente ao encontro do nosso semelhante ou diferente. Esse mesmo desafio do dialogar é intrínseco à arte.

A produção artística sempre lutou para chegar até o público. Do contrário, ela não existe, como diria o filósofo Mikel Dufrenne: não existe objeto estético sem espectador-intérprete. Este é um dos grandes desafios dos artistas de Sorocaba, o mesmo que atinge aqueles que vivem em grandes metrópoles, como São Paulo e Berlim. 

Na tentativa de romper fronteiras, a artista e galerista Fernanda Monteiro criou, em parceria com artistas locais, o projeto TRANSitar. Ela me conta que em Sorocaba, como qualquer cidade do seu porte, há ótimos artistas – a exemplo dos excelentes coletivos de fotógrafos -, mas há pouco estímulo do poder público para que essa arte seja vista e vivida. Essa realidade local e global se reflete no projeto, que tem como referência o prefixo trans, de ir além, palavra que forma verbos como transcender, transformar, transgredir, transmitir, transmutar, transparecer, transpor, transtornar, transverberar, transverter, todos muito familiares ao fazer artístico. 

Penso que esse “transpor” é, primeiramente, um desafio interno e subjetivo, e diz respeito à conquista do ser humano de conseguir se expressar. Logo, ao transformar essa expressão em arte, é preciso comunicá-la ao outro para que, em contato, essa arte e esse diálogo se construam. “Desnudar um percurso, um processo contínuo, ainda inconcluso, entre a tentativa, o fracasso e o eventual acerto. Transitar significa antes de tudo mover-se, seguir independente de um rumo certo, da premeditação de um objetivo, comportando a possibilidade da “deriva”, do deixar-se levar, do permitir-se característico da experimentação”, como bem definiu Fernanda.

O lugar fixo é cada vez menos importante para o artista, lembra ela. Sair de si, romper os limites da galeria, da cidade, para pensar o urbano, o local e o global, é ver a arte como vetor de impacto e sensibilização. “A arte é para o artista uma nudez”. Logo, a primeira vitória é o conseguir despir-se.

Nesse convite ao trânsito em direção ao “outro”, o projeto traz intervenções na fachada da Galeria Fernanda Monteiro que convidam o pedestre a pensar junto com os artistas; as ocupações no interior se opõem ao conceito de exposição, em uma proposta que prioriza um processo artístico, o compartilhamento com o público de uma obra inacabada, em contraposição à tradicional obra de arte do museu, sem abertura para outros tipos de interferências. Ao lado de obras “aparentemente” prontas, mapas mentais construídos pelos artistas e anotações pessoais que envolvem o processo, explica Fernanda. E para as instituições o projeto leva debates sobre o processo de produção e os desafios da arte na cidade e no mundo, a exemplo do que participei no último dia 10, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba, do qual faço parte como pesquisadora.

Os artistas e suas obras em construção

Participam do Projeto TRANSitar os artistas Fernanda Monteiro, Joaquim Marques, Letícia Barreto, Maria Radicce e Mazé Perbellini. Todos nasceram na região, à exceção de Joaquim Marques, português.

Joaquim Marques e Letícia Barreto, que formam o duo artístico Entropia na Caneca, levaram a poesia visual para a fachada da galeria (foto acima), onde palavras relacionadas com deslocamento e migração compõem uma espécie de mapa. “O mapa da civilização é o mapa do deslocamento de pessoas e bens”, explicam. “As linhas descrevem destinos, trajetórias, gravam vidas, indicam motivações variadas para o ato de migrar ou imigrar. Na medida em que se cruzam, estabelecem a possibilidade de intercâmbios culturais e evidenciam a esperança implícita no ato de mudar”, diz Fernanda. A escolha do fluxo de palavras é uma maneira de pensar sobre os fluxos migratórios que ocorrem no mundo atualmente.

O grafismo de Maria Radicce, impresso na parede externa da galeria, é uma espécie de escrita que traduz suas "apropriações em percurso" e, como o próprio nome diz, é fruto de seus percursos rotineiros pelas ruas da cidade. A galeria também abriga fotos e vídeos que resultam das suas andanças pela cidade. “O ateliê é a minha cabeça, o celular”, conta ela, que utiliza o aparelho para produzir imagens de Sorocaba. Desse seu transitar forma-se uma biblioteca particular, um repertório imagético/sensorial, que ela expõe  sob o título Na Altura do Olhar.

Maria Radicce em seus trânsitos pela cidade

A vitrine da galeria traz uma tela de grandes dimensões, onde Mazé Perbellini  apresenta abstrações a partir da observação da natureza, e que denomina "Espaços informais da paisagem," fruto do movimento provocado pelo vento na vegetação. A artista desnaturaliza a paisagem e mostra as paisagens internas, suas sensações.

Paisagens internas de Mazé Perbellini

No jardim da galeria Fernanda Monteiro trabalha a linha, um elemento simbólico que há muito transita por sua obra, ora representando o traçado da vida, a malha sanguínea, a sutura, a materialização do movimento e a consanguinidade, a ancestralidade, nessa obra representada por uma trama de fios vermelhos que se estende sobre a vegetação, ramificando-se sobre ela. Trama que revela os dramas pessoais da artista igualmente presentes em nós.

A linha no trabalho de Fernanda Monteiro

Em TRANSitar vemos que uma ocupação artística é, pois, uma apropriar-se de si, da cidade, o compartilhamento de um diálogo interno e externo. Durante o primeiro semestre de 2016, enquanto durar o projeto, a linha, o percurso, conceito-chave nessa produção coletiva, quer se ramificar e alcançar um amplo público, em uma metáfora da arte que procura o olhar ativo do espectador. Compartilhar expressões individuais e coletivas sempre foi um bom caminho para encontros e trocas que valem a pena.

1 comentários:

  1. Legal!! parabens pela matéria e a todos os artistas envolvidos em TRANSitar novas possibilidades visuais e perceptivas. abraços

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