quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Alessandro Atanes, para o PortoGente (postagem realizada ao som de Ulisses em Copacabana Surfando com James Joyce e Dorothy Lamour)

Na introdução ao seu livro A Era dos Extremos: o breve século XX, o historiador britânico Eric Hobsbawn, nascido em 1917, comenta sua dupla condição de historiador e testemunha do século XX, como quando estudava na Alemanha na década de 30 e presenciou a ascensão dos nazistas ao poder.

Ainda que um pouco mais moço que Hobsviversuamusicabawn, o compositor Gilberto Mendes, nascido em 1922, também se equilibra nos seus livros entre o testemunho do século e a memória das transformações ocorridas na música durante seu tempo de vida, muitas das quais causadas por ele mesmo. Isso é o que se nota na primeira leitura de Viver sua música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à Avenida Nevskiy, lançado na semana passada em Santos pela Editora Realejo em parceria com a Edusp.

Assim como Hobsbawn, Mendes testemunhou um evento de dimensões históricas, a ocupação de Praga pelo exército da União Soviética em julho de 1968, quando passaria no quarto de hotel alguns dias de guerra até conseguir embarcar em um trem junto com um funcionário do consulado brasileiro. Fiquemos com sua narrativa:

Ao meio-dia, um tiroteio infernal! Que felizmente só ouvimos, soubemos depois que canhões de tanques tinham destruído o prédio onde uma rádio clandestina ainda operava, e um caminhão carregado de munições explodira, tudo ali bem perto de nós. O estranho é que todo mundo estava nas ruas, procurando informações, saber o que fazer. O mais certo era entrar al alguma das filas, já enormes, frente às poucas padarias abertas, para comprar o que tivessem, mas sobretudo muito pão. Inacreditável, eu estava vivendo uma guerra! Daí a pouco estaria comendo restos de comida, gatos, cachorros, até ratos, talvez, eu me lembrava dessas cenas em muitos filmes.
(...)
Cheguei a abrigar [no quarto do hotel] um casal que me pediu para passar a noite em meu quarto. Dormimos todos juntos. Não me ocorreu o perigo que corri de ser preso com eles pelos soviéticos. Eu, que tanto amava o comunismo, estava sem querer ajudando a resistência aos invasores comunistas. Os dois, bem moços ainda, tinham participado de uma operação de destruição de um tanque e estavam fugindo. Mostraram um fragmento do tanque, que eu ingenuamente pedi de lembrança. Claro que não iriam, não poderiam me dar. A lembrança era para eles. Apesar de todo o meu desespero, não me esqueci de apanhar uma cápsula vazia de bala de fuzil, do chão de um largo em frente a uma ponte sobre o rio Moldávia, onde parecia ter havido muito tiroteio. Guardo esse minúsculo e precioso troféu como recordação, até hoje.
No dia seguinte, lá pelas cinco horas da tarde, eu olhava desesperançado pela janela do meu quarto quando vi na janela do consulado brasileiro – as duas davam para o mesmo pátio – uma pessoa me fazendo sinais e gritando que passaria de carro imediatamente na porta do hotel, para me pegar. Descobrira um trem que os russos tinham permitido partir para Viena e só teve tempo de me avisar, eu estava ali bem ao lado.
Inesperado, fantástica sorte! Já na poderosa Mercedez Benz do consulado, meu anjo da guarda – esse funcionário que havia visto poucas vezes – me preveniu que iria tentar chegar a tempo, só tínhamos cinco minutos, e a distância era grande. Correu o mais veloz que pôde, até subiu na calçada em certas ruas, como num filme de ação, de espionagem. Poderíamos ter levado um tiro de canhão se repentinamente topássemos com um tanque pela frente.
Mas o trem estava lá...

As referências ao cinema, que dão sentido às lembranças do autor, revelam a paixão de Gilberto Mendes pelos filmes, paixão que muitas vezes acaba servindo de guia para as histórias que conta, mas também de guia para o leitor, que acaba aprendendo como o cinema foi responsável por parte da formação musical e afetiva de um compositor erudito de vanguarda como Gilberto Mendes.

Ele comenta temas clássicos de filmes, o uso de música erudita e do jazz nos desenhos animados (quem não lembra dos tombos de Tom marcados por um solo de bateria?), a vinheta de abertura dos filmes da 21th Century Fox, a leveza de Fred Astaire, a criação da música havaiana dentro dos estúdios de Hollywood, o choque e a criatividade musical que ocorre com o contato de músicos eruditos fugidos do leste europeu com o jazz norte-americano.

Começar a ler seu livro é como embarcar num navio que dará a volta no mundo com alguém que já deu três voltas no planeta e adora dar mais uma: Santos, Havaí, Nova York, São Petersburgo... Isso porque Gilberto Mendes vai nos falando de coisas, pessoas, lugares e músicas que não conhecemos (eu, pelo menos, não conheço muitos deles), mas que aos poucos vão se tornando familiares, como se ele nos os apresentasse, como se fôssemos seus amigos em comum.

Daí vem, acredito, o título do livro, “Viver sua vida”, um elegante convite para que cada leitor construa seu repertório particular. Ele nunca usaria a expressão no modo imperativo “Vive tua vida” ou “viva sua vida”, enquanto o uso do verbo no infinitivo parece mais um estímulo, no máximo um conselho. Essa generosidade e confiança de Gilberto Mendes na inteligência do interlocutor é uma das características mais marcantes de sua personalidade. Lembro que entre outubro e novembro de 2007, um grupo de alunos da Escola Técnica de Música e Dança de Cubatão, todos adolescentes, passou semanas e semanas visitando o compositor para aprender com ele algumas técnicas para a interpretação de suas músicas numa Noite Gilberto Mendes organizada pela direção da escola.

Em 29 de novembro, na mesma noite em que os alunos se apresentavam, um recital de sua obra ocorria em Paris, e ele ali se divertindo com os alunos e a platéia de pais de alunos em Cubatão. Que seu novo livro, assim como o anterior, desperte estes sentimentos de generosidade e beleza em que o leia. Como já disse uma vez o escritor Flávio Viegas Amoreira: “Santos é do Mendes!, Sim, do Mendes, do Gilberto Mendes!”.

Referências
Gilberto Mendes. Viver sua música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à Avenida Nevskiy. São Paulo e Santos: Edusp e Realejo, 2008.
Gilberto Mendes. Uma Odisséia Musical: dos Mares do Sul à Elegância Pop / Art Déco. Apresentação de Haroldo de Campos. São Paulo: Edusp e Giordano, 1994.

3 comentários:

  1. Esse livro parece ser foda, pois acima de tudo, mostra humanidade e vivência do Gilberto Mendes.
    E porra, Eric Hobsbawn É O CARA, sou fã dele, historiador genial e socialista exemplar.
    Tem uma entrevista do cacete em que ele comenta o momento atual da esquerda mundial e seu papel. Fodido!

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  2. Como sou fã dos dois velhinhos comunas, achei que seria legal colocá-los lado a lado como testemunhas do século. E essa entrevista aí do Hobsbawn, passa o endereço ou local de publicação, por favor.
    Um abraço,
    Alessandro

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  3. Tá na mão:

    http://ceticosantitermidorianos.blogspot.com/2008/09/entrevista-eric-hobsbawm.html

    Nesse blog há outra entrevista legal dele, e outros textos aleatórios bacanas, vale a leitura.

    Abraço

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