domingo, 12 de setembro de 2010

Alessandro Atanes

La Odisea é a adaptação do clássico grego sobre a viagem de retorno do guerreiro e navegador Ulisses à Ítaca, sua cidade natal, feita pelo grupo Teatro de Los Andes, da Bolívia sem mar, baseado em Sucre, a cerca de mil quilômetros do Oceano Pacífico.

I O mar sonoro da Bolívia
O grupo faz da imaginação e do cosmopolitismo eficazes ferramentas de encenação. A presença do mar não se faz pelo uso de água, mas sim pelos sons. O cenário de cortinas móveis de bambu, sempre se chocando e ressoando-se. Foles ou flautas, os bambus captam tempestades e trovões, vagas e ondas e o vento do mar em sua música constante. As cortinas ainda se dividem em uma dezena de pequenos módulos que se movem em todas as direções, inclusive na diagonal como a Rainha nas peças de xadrez, garantindo a realização de diversos arranjos cenográficos.  

II Cosmopolitismo
No Teatro de Los Andes tem gente também da Argentina, Brasil e até da Itália. Ainda ouvi seus integrantes falarem em mais línguas (a peça tem falas em pelo menos quatro).

III Travessias
Além do retorno à Ítaca, a travessia do Ulisses dos Andes pertence à categoria que a ciência social chama de “fluxos imigratórios”, fenômeno contemporâneo em que o país de destino não é mais uma conquista, como Tróia, mas sim uma aspiração, um destino escolhido, não importa se para fugir da pobreza ou em busca de uma conquista. Por isso, um Ulisses com tantos sobrenomes no palco.

Neste sentido, o das vidas comuns, à adaptação do Teatro de Los Andes podemos aproximar o protagonista do Ulisses de James Joyce, Harold Bloom, em sua jornada por Dublin naquele 16 de junho de 1904, dia em que corre a história deste romance de 1922.

IV La Razón Blindada
Sobre os relatos de testemunho sabe-se uma coisa: eles são invariavelmente escritos pelos sobreviventes, isto é, a história completa só será revelada pela fabulação, nunca pela experiência (com exceção dos romances psicografados). Cabe à ficção, defende a intelectual argentina Beatriz Sarlo, ir além dos fatos que a experiência registra:

A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.

É o que faz Roberto Bolaño com os fatos políticos no Chile ou o português Gonçalo M. Tavares com as novas guerras na Europa ou mesmo Marcelo Airel com a tragédia social de Cubatão.

Foi à esta chave de leitura que cheguei após ver La Razón Blindada, espetáculo do Grupo de Teatro Malayerba, de Quito, Equador. O jogo cênico da peça - dois homens sentados contam histórias, fabulam, e encarnam personagens - vem de uma situação real. Por falta de qualquer condição material em uma prisão de segurança máxima na Patagônia durante a ditadura argentina, era só o que restava a um grupo de presos: contar histórias uns aos outros em um jogo que os protegesse da violenta realidade, mas que também possa ter oferecido condições para que tenham criado significados.

Nas cadeiras, acompanhamos Sancho e De La Mancha fabulando e criando situações e personagens com sutis gestos. Outras cadeiras, todas com rodinhas, e mesas, também com rodinhas, garantem muita movimentação. Ao fundo, um telão projeta interações audiovisuais e o recado final sobre a origem da peça.

A eficiência narrativa do modelo - afinal, foi um gênero o que criaram os presos da Patagônia - permitiu que a fabulação correse solta.

O teatro ensina.

V La Fiesta (Trinidad González e criação coletiva, Chile)
Nada mais
precisa
ser dito

Nada más
quedará
para decir

VI Impressões finais
Ingressos concorridos, pude assistir a apenas cinco dos espetáculos da extensa programação: La Odisea, Los Santos Inocentes (Mapa Teatro, Colômbia) e De monstruos y prodigios: la historia de los castrati (Teatro de Ciertos Habitantes, México) são de extrato barroco, de excessos, duplicidades e uma tendência para a alegoria. Exemplos estão nos próprios títulos, “santos inocentes”, “monstros e prodígios”, os xipófagos na peça mexicana ou na proliferação de ulisses com sobrenomes latinoamericanos em La Odisea. É um barroco além da escola artística. Um barroco que faz parte da própria formação dos povos latinoamericanos, como diz Serge Gruzinski, professor de Etnolinguistica do México Colonial, para quem o contato de séculos entre a cultura europeia e civilizações indígenas produziu identidades fractais, miscigenadas e sincréticas, barroquíssimas.

La Fiesta e La Razón Blindada operam em outro tom. São mais contidos e concisos, leves, não por causa dos temas e do tratamento que recebem, mas devido a uma leveza de pensamento, descrita assim por Italo Calvino: “A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório”.

Em sua conferência sobre o tema, destaca a leveza de Perseu (voltamos aos gregos), personagem que domou Pégaso, o cavalo alado, e que enfrenta e mata a Medusa sem encará-la diretamente nos olhos:

É sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e assume como um fardo pessoal.

É o que fazem os autores e atores destas duas peças.

Referências:
Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada objetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.

Serge Gruzinski. Do Barroco ao Neobarroco: Fontes coloniais dos tempos Pós-modernos. O caso mexicano. In: Ligia Chiapini & Flávio Wolf de Aguiar (organizadores). Literatura e História na América Latina. São Paulo: Edusp, 1993.

Italo Calvino. Leveza. In: Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


3 comentários:

  1. Esse é o espaço de interlocução que o teatro precisa, parabéns pelo relato!
    Caio Martinez Pacheco

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  2. Salve Xuxa.
    Muito pertinentes suas notas resgatando o primeiro Mirada, informo que alguns dos espetaculos deste ano já estãocom ingressos esgotados, mas o aclamado Romeu e Julieta serão aberto a todos no emissario, poderiamos iniciar uma campanha e tentar um publico recorde para assistir que tal??? huahuahua abraços

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