sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Jediel Gonçalves*
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Ao meu amigo Aguinaldo J. Gonçalves

Falar, escrever, pensar; escritura poética, épica ou filosófica; representações mundanas, teatrais ou intelectuais; mecanismos da alma, etapas do conhecimento; o próprio universo e sua criação – tudo é pintura. Deus, o rei, o sábio, o escritor, o filósofo, o homem do mundo, todos eles são pintores. Utilizada como metáfora ou como comparação, como exemplo ou como prova, a representação pictórica serve de paradigma a todos os sistemas de interpretação, fornecendo um modelo geral de compreensão de todas as formas de representação. Da pintura concebida como uma eloqüência silenciosa às cores da eloqüência, a unidade discursiva da retórica pictórica e escritural não deixava dúvida. Ut pictura poiesis. Ut poiesis pictura.

A pintura é um fardo, sua essência é engano; e o maior enganador nesta arte é o pintor. O que chamamos de “exagero” nas cores e nas luzes é o efeito de um profundo conhecimento do valor das cores e de uma admirável indústria / fabricação / empreendimento que origina os objetos pintados mais verossímeis que os próprios objetos que vemos, empiricamente, todos os dias. Imitação confunde-se com simulação. Imitatio et aemulation. Aristóteles: a imitação conduz à originalidade, pois as noções de totalidade e de perfeição na natureza tornarão mais puras e mais sensíveis as noções de nossa natureza dividida. Descobrindo e relacionando as “belezas” ao “belo perfeito”, o artista conhece o Belo; com o auxílio das formas sublimes constantemente presentes diante dos olhos, ele se torna uma regra para ele mesmo.

As cores exigem uma realidade – abandoná-las significa recusar a carne, o desejo e a tentação. As palavras conhecem perfeitamente a terra natal das cores. Jogos de aparências sem objetos constituem a ponta extrema e evanescente do colorido. Interpenetração de cores, jogos de reflexos que, por eles mesmos, são reflexos de reflexos. Tudo – que é uma fineza de espírito, uma instantaneidade, plenitude de vida e de sentimento – transporta-nos no reino da música. Movimento - - - - - - -

Descrições de paisagens, reflexões sobre a teoria das representações de paisagens. Surge uma estética da abstração avant la lettre: jogo de cores e de luz, evocação visionária, atmosfera poética, música da natureza. Analogia dos sons e das cores.

Philipp Otto Runge: a música atinge seu apogeu quando a poesia une-se a ela para lhe insuflar um pouco de alma. O som obscuro acolhe a palavra, articula-se à ela. A palavra funde-se com o som. Tudo se integra organicamente. Ouvida como discurso lírico e como canto, a poesia encontra facilmente seu lugar na síntese musical dos sons e das cores.

Lessing – Laokoon: os “signos naturais” e os signos convencionais da pintura: a pintura emprega, por meio de suas imitações, formas e cores estabelecidas no espaço, enquanto a poesia utiliza sons articulados que se sucedem no tempo. Espiritualidade e idealidade, emprestadas à poesia.

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O sistema semiótico da literatura utiliza signos convencionais e não dispõe de evidência material e sensual dos signos naturais que são para a pintura as cores e as formas. Se a poesia é sucessão de sons articulados, como palavra e voz, podemos criar um vínculo entre poesia e cores. Sob a forma da “audição colorida”. Caligrafia, iluminuras e caligramas desenvolvem o desenho das letras e colorem a página do manuscrito ou impresso. O escritor é cego como Homero? Em todo o caso, ele é cego às cores, daltônico?

Crise do verso, Mallarmé: pensar e escrever sem acessórios, nem cochicho, porém tácito. Palavras são imortais, materializam a verdade. Discurso falha quando exprime os objetos por meio de pinceladas e responde com o colorido.

A língua, tendo perdido sua aproximação original e divina com as coisas, o poeta, através de seus versos, “compensa” o defeito das palavras. O defeito faz efeito. O verso refaz uma palavra inteira, nova, estrangeira à língua e, ao mesmo tempo, encantatória, que a reminiscência do objeto nomeado acolhe numa nova atmosfera.

A busca de uma visualidade e de uma pictorialidade das palavras do escritor que exprimiam os objetos por pinceladas e respondiam com um colorido corresponde a uma utopia lingüística de união das palavras e das coisas. A literatura é o último refúgio a partir do momento que a modernidade no século XVII separou palavras e coisas. Homero permanece cego, porém seus versos não estão condenados a nunca encobrir a vista, nem a sensação das cores, pois o poeta conserva um privilégio criador que lhe permite compensar as imperfeições de sua língua. Poetizar pelas artes plásticas, meio de prestígios diretos, parece sem intervenção o fato do ambiente despertar às superfícies seu segredo luminoso.

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Como escrever as cores com as palavras? Um livro deve, antes, passar no espírito do leitor. Basta abrir os olhos. A composição gráfica / a imagem textual não devem ser somente lidas, mas vistas. O ritmo de uma frase representativa de um ato, ou mesmo de um objeto, possui apenas sentido se ele os imita, e, figurado sobre o papel, retomado pela letra na estampa original, consegue oferecer algo às vistas. Litografias sobre a página branca.

O poeta tem um poder “logotético”, segundo Mallarmé. Ele consegue distinguir: o verso / a língua comum. Num estado primitivo da língua, num estado de dicionário natural, numa metáfora ou numa interjeição / onomatopéia, com os primeiros berros da natureza, a vista está unida à audição; a cor, à palavra; o cheiro, ao som. A abstração mais pura.

O ponto de vista do convencionalismo absoluto (arbitrário da relação entre a coisa designada e o signo lingüístico) resulta, às vezes, num radical ceticismo lingüístico (a língua é mentirosa e é incapaz de dizer a verdade) e numa missão designada ao artista, o único suscetível de reascender as metáforas apagadas, de devolver suas cores às palavras, de reconduzir a escritura alfabética em direção a uma escritura hieroglífica, de restabelecer o contato entre as palavras e as coisas. O escritor tem por missão de dar mais força ao mundo “mimológico” de sua língua, segundo Gérard Genette.

A estória bíblica do Gênese não dissocia a Criação do ato logotético de nominação e de instituição da linguagem. Neste estado original, as palavras coincidem perfeitamente com a realidade. Deus ofereceu ao homem cada coisa com seu próprio nome. Assim, pela palavra, o homem une-se à língua das coisas e a fala é a tradução da língua das coisas na língua do homem. Não é equivalência, nem semelhança. O homem passa da língua das coisas à sua própria língua. Há uma similitude original entre as palavras e as coisas. Similitude não-sensível entre a fala e o que pretendemos dizer, entre o escrito e o que queremos enunciar, entre a fala e a escrita. A escritura e a língua são arquivos de similitudes não-sensíveis, de correspondências não-sensíveis, cujo vetor é o sistema semiótico.

A decadência da linguagem começa com o Paraíso Perdido e a Torre de Babel: as palavras se afastam das coisas e as línguas tornam-se estranhas umas às outras. Walter Benjamin: a fala permanece um murmurinho, enquanto as coisas são classificadas na Sprachlosigkeit [mudez / perda da fala] e permanecem mudas. Existe, mesmo assim, uma transparência original da linguagem através da qual as artes não verbais (escultura e pintura) se aproximam da linguagem poética. As artes são uma tradução da língua das coisas.

Traduzir, alargar a língua, como Luther traduzindo a Bíblia, como Hölderlin traduzindo Sófocles. Traduzir não é ir de uma língua à outra, significa reconduzir as duas línguas à sua Urbild [original-protótipo-modelo] comum. Traduzir é visitar uma língua estranha onde palavras e imagens se encontram. Inter-/semioses.

O Romantismo tinha prefigurado a utopia lingüística de uma plasticidade, de uma visualidade, de uma musicalidade das palavras da linguagem poética. Língua hieroglífica de Novalis. O sentido e o preço do indizível. A pintura moderna redescobriu o poder emocional da cor, além do simbolismo culturalmente convencional ou da mimeses ingenuamente realista.

De Baudelaire à Rilke, a escritura em busca de perfeição e intensidade se avizinham da pintura e da música. Marcel Proust: a frase ganha força com experimentações pictóricas. A cor expõe uma interioridade, euforia. Frente às cores, a palavra é impotente. O sentido estético: ligar a arte à vida. Tudo que descobrimos num quadro artístico, ao mesmo tempo, pictórica e intelectualmente, é maravilhoso e transmissível. Rembrand et Chardin: não é uma impressão pessoal, arbitrária; é a inesquecível verdade da obra plástica. Existe uma operação misteriosa que muda o valor da palavra e faz desse valor uma fórmula mágica! Rosas são cremosas e comestíveis!

Espaço axiológico, Proust: pintor em prosa, maneira precisa e poética de explicar uma obra artística. Descobrir do que são feitos os valores estéticos e psicológicos de uma obra de arte. Chardin, gozar de toda a natureza morta! As obras de arte iniciam às verdades (a magnificência do fabricante e da fabricação!). Verdade histórica e misteriosa. A pintura, difícil como a natureza, fecunda de enriquecimento interior: revelações sobre o mistério da criação artística // problema da visão do artista. Poesia da visão das coisas: é preciso conservar uma imagem preciosa. Ausência completa do que chamamos (erroneamente) de “literatura”. As artes evocam os sonhos: possuem algo que seria o motivo de infinies rêveries. Sinto viver e pensar num quarto onde tudo é criação e linguagem de vidas profundamente diferentes da minha... dificuldades de enxergar o mundo exterior, faculdade de perceber com uma intensidade, uma profundeza rara, mas em instantes escolhidos, privilegiados, e, às vezes, de uma brevidade fulgurante. Conheço o objeto quando me separo dele. Prisioneiro.

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Sensibilidade nervosa, qualidade de sensualidade, vibrações da alma com relação direta com a realidade exterior, sensação intelectual e espiritual, materialidade das cores, realidade do trabalho da fabricação, decepção pela imaginação daquele que observa.

A imaginação além da materialidade da obra. Descobrir o que está atrás desta materialidade: a visão do artista, a imagem do mundo particular, descoberta e expressão de uma verdade psicológica.

O artista re-conta. Ele estabelece o inventário do existente. A música, por exemplo, pode ser uma mera transcrição do canto de pássaros e dos ruídos inscritos na natureza física por uma divindade. O espelho que reflete o mundo e a vida da consciência humana é um espelho capaz de produzir suas próprias imagens. A arte pode representar uma incapacidade para se ver o mundo tal qual é: uma fuga ou patológica ou simplesmente infantil que renega todo “princípio de realidade” (como em Freud). Talvez as artes se comuniquem entre si graças à fantasia, que só pode reajustar a composição de certos mosaicos e jux-tapor, por meio de montagens e colagens, o que já se encontrava lá. Mundo-possível-mundo. As artes se consagram na criação e na criatividade. W. Shakespeare: elas “incorporam” mundos novos e alternativos, caso contrário, só poderiam dedicar-se a preencher toda lacuna de qualquer realidade imediata com seus recursos executivos de re-criação e re-presentação.

Referênciaas:
Abbé Du Bos. Réflexions critique sur la poésie et sur la peinture. Paris, École nationale de Beaux-Arts, 1993.
Aguinaldo J. Gonçalves. Museu movente, o signo da arte em Marcel Proust. São Paulo, Editora Unesp, 2004.
Anne Henry. Marcel Proust, théories pour une esthétique. Paris, Klinck-sieck, 1981.
Ernst Hans Gombrich. L’art et l’illusion, Psychologie de la représentation picturale. Paris, Gallimard, nouvelle édition, 1987.
Gérard Genette. Mimologiques, Voyage en Cratylie. Paris, Le Seuil, 1976.
Gotthold Ephraim Lessing. Laocoon, avant-propos d’Hubert Damisch. Trad. Courtin. Paris, Hermann, 1990.
Jacqueline Lichtenstein. La couleur éloquente. Paris, Flammarion, 1989.
Jacques Derrida. La vérité en peinture. Paris, Flammarion, Champs, numéro 57, 1978.
Marcel Proust. Contre Sainte-Beuve. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1971.
Maurice Merleau-Ponty. L’oeil et l’esprit. Paris, Gallimard, 1964, folio essais, 1985.
Michel Henry. Voir l’invisible. Paris, éditons François Bourin, 1988.
Tzvetan Todorov. Théories du symbole. Paris, Seuil, 1977.

*  Jediel Gonçalves é Formado em Letras Modernas pela Universidade de São Paulo; mestre em Literatura Francesa pela Université de Provence Aix-Marseille I, é membro do Laboratório de Estudos Intersemióticos; Pesquisador em literatura francesa dos séculos XIX e XX; crítico literário; pesquisador das relações e implicações/traduções das artes plásticas no universo da criação literária. Atualmente realiza um estudo intersemiótico sobre a recepção de obras plásticas na obra literária do escritor francês Marcel Proust.

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