Alessandro Atanes, para a coluna Porto Literário do PortoGente
Retomei no final do ano a leitura de Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, clássico de 1946 do alemão Erich Auerbach cujo título é bem explicativo de seu conteúdo. Ela me fez voltar ao assunto das relações entre História e Literatura, tão constante neste espaço.
Comecei a ler também Primavera con una esquina rota, romance de 1982 do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), romance no qual localizei logo no segundo capítulo um destes pontos de intersecção em que a ficção explica, ou ao menos aponta com clareza, a realidade de determinada situação histórica.
Em Primavera... estamos no Uruguai da última ditadura (1973-1984) e acompanhamos a trajetória de um preso político, bem como a de sua família. A narrativa reúne capítulos em primeira e terceira pessoas e se divide entre as perspectivas do preso político, de sua esposa Graciela e de sua filha Beatriz, de nove, dez anos (ainda não terminei o livro, talvez haja outras).
No capítulo em questão – Feridos e contundidos (Ações políticas) – as duas conversam. Vemos ali como a conversa entre mãe e filha é atravessada pela história recente latinoamericana. Escrito na forma de diálogo entre as duas, ele começa assim (a tradução é do colunista):
O capítulo é curto, tem três páginas. A esse diálogo inicial, o autor pospõe uma descrição da mãe (trinta e dois, trinta e cinco anos), que volta ao livro que lia antes da interrupção da filha. Esta sai do quarto da mãe, mas volta logo depois para contar que havia brigado na escola com sua amiga Lucila. Não era a primeira vez, mas agora era sério. Lucila disse na escola que o pai de Beatriz devia ser um delinqüente já que estava preso. Beatriz reage dizendo que era assim porque seu pai era um preso político, ao que a amiga responde que seu pai havia dito que exilados políticos tiram o emprego das pessoas. É aí que, sem saber o que responder de volta, Beatriz bate em Lucila. Ao ouvir a história, Graciela comenta: “Assim o pai dela agora vai poder dizer que os filhos dos exilados batem em sua filhinha”. A mãe diz para a filha que ela não deveria ter feito isso, ainda que acrescente que o pai de Lucila não deveria ter dito aquelas coisas, ainda mais porque tem “cultura política”.
Nesse conflito narrado pela filha dentro da narração do livro (a história dentro da história, procedimento que tem em Hamlet – William Shakespeare, 1601 – uma de suas principais manifestações), vislumbramos ali toda a carga histórica de um momento marcado por ditaduras no Cone Sul (Brasil, Chile, Argentina e Uruguai), mas sobretudo vemos o impacto que os fatos históricos causam na vida particular das pessoas. Vemos no capítulo como a filha deve crescer para ocupar o lugar vago no núcleo familiar. É por isso que chama a mãe pelo nome e por isso que toma a iniciativa de fazer a limonada e oferecer para Graciela, como se o impacto da perda tivesse as igualado, ainda que no papel de vítimas. E é da seguinte forma que o capítulo é encerrado:
São estas duas pontas de linguagem (a filha chamando a mãe pelo nome na primeira palavra e na última palavra do capítulo) que formam o nó, isto é, o ponto de intersecção como dito acima, entre Literatura e História. E isso só ocorre devido a como Benedetti dispõe a linguagem de forma mais eficiente do que a simples denúncia ou explicação do momento histórico. É aí, nestes momentos, que a ficção fala do mundo.
Referências:
Erich Auerbach. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2007 (1ª ed. 1946).
Mario Benedetti. Primavera com uma esquina rota. Madri, Espanha: Punto de Lectura, 2008.
Retomei no final do ano a leitura de Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, clássico de 1946 do alemão Erich Auerbach cujo título é bem explicativo de seu conteúdo. Ela me fez voltar ao assunto das relações entre História e Literatura, tão constante neste espaço.
Comecei a ler também Primavera con una esquina rota, romance de 1982 do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), romance no qual localizei logo no segundo capítulo um destes pontos de intersecção em que a ficção explica, ou ao menos aponta com clareza, a realidade de determinada situação histórica.
Em Primavera... estamos no Uruguai da última ditadura (1973-1984) e acompanhamos a trajetória de um preso político, bem como a de sua família. A narrativa reúne capítulos em primeira e terceira pessoas e se divide entre as perspectivas do preso político, de sua esposa Graciela e de sua filha Beatriz, de nove, dez anos (ainda não terminei o livro, talvez haja outras).
No capítulo em questão – Feridos e contundidos (Ações políticas) – as duas conversam. Vemos ali como a conversa entre mãe e filha é atravessada pela história recente latinoamericana. Escrito na forma de diálogo entre as duas, ele começa assim (a tradução é do colunista):
- Graciela, disse a menina, com um copo na mão. – Quer uma limonada?
(...)
- Já disse para não me chamar de Graciela.
- Por quê? Não é seu nome?
- Claro que é meu nome. Mas prefiro que me chame de mãe.
- Está bem, mas não entendo. Você não me chama de filha, mas de Beatriz.
- É diferente.
- Tá bom, quer limonada?
- Sim, obrigada.
O capítulo é curto, tem três páginas. A esse diálogo inicial, o autor pospõe uma descrição da mãe (trinta e dois, trinta e cinco anos), que volta ao livro que lia antes da interrupção da filha. Esta sai do quarto da mãe, mas volta logo depois para contar que havia brigado na escola com sua amiga Lucila. Não era a primeira vez, mas agora era sério. Lucila disse na escola que o pai de Beatriz devia ser um delinqüente já que estava preso. Beatriz reage dizendo que era assim porque seu pai era um preso político, ao que a amiga responde que seu pai havia dito que exilados políticos tiram o emprego das pessoas. É aí que, sem saber o que responder de volta, Beatriz bate em Lucila. Ao ouvir a história, Graciela comenta: “Assim o pai dela agora vai poder dizer que os filhos dos exilados batem em sua filhinha”. A mãe diz para a filha que ela não deveria ter feito isso, ainda que acrescente que o pai de Lucila não deveria ter dito aquelas coisas, ainda mais porque tem “cultura política”.
Nesse conflito narrado pela filha dentro da narração do livro (a história dentro da história, procedimento que tem em Hamlet – William Shakespeare, 1601 – uma de suas principais manifestações), vislumbramos ali toda a carga histórica de um momento marcado por ditaduras no Cone Sul (Brasil, Chile, Argentina e Uruguai), mas sobretudo vemos o impacto que os fatos históricos causam na vida particular das pessoas. Vemos no capítulo como a filha deve crescer para ocupar o lugar vago no núcleo familiar. É por isso que chama a mãe pelo nome e por isso que toma a iniciativa de fazer a limonada e oferecer para Graciela, como se o impacto da perda tivesse as igualado, ainda que no papel de vítimas. E é da seguinte forma que o capítulo é encerrado:
- Vai, me traz uma limonada.
- Sim, Graciela.
São estas duas pontas de linguagem (a filha chamando a mãe pelo nome na primeira palavra e na última palavra do capítulo) que formam o nó, isto é, o ponto de intersecção como dito acima, entre Literatura e História. E isso só ocorre devido a como Benedetti dispõe a linguagem de forma mais eficiente do que a simples denúncia ou explicação do momento histórico. É aí, nestes momentos, que a ficção fala do mundo.
Referências:
Erich Auerbach. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2007 (1ª ed. 1946).
Mario Benedetti. Primavera com uma esquina rota. Madri, Espanha: Punto de Lectura, 2008.
É sempre muito bom passar por aqui porque aprendo. Confesso que preciso dessas leituras. Não que as minhas não sejam, por vezes, profundas, mas ler através dos olhos do outro, como nesse comentário de livro, anima-me. Só uma ideia me distrai provocada pelo fragmento acima: realidade histórica que brota da ficção ou o contrário? É só uma divagação... Leia mais o livro e nos conte. Parabéns sempre por este espaço. Abraços, Mô Amorim
ResponderExcluirwww.estripitizese.blogspot.com