A inspiração de analisar um único episódio (a filha chamando a mãe pelo nome) para traçar relações entre História e Literatura veio da leitura retomada de Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, clássico de 1946 do alemão Erich Auerbach cujo título é bem explicativo de seu conteúdo. Ali, episódios e passagens da literatura ocidental, desde a Odisseia até Virgínia Woolf, são utilizados por Auerbach para apontar a evolução de como a ficção ocidental se relaciona com a realidade, não importa se em um clássico épico grego ou no romance realista do século XIX, cada gênero tem suas próprias formas de apresentar a realidade.
Os estudos de caso apresentados em Mimesis... serviram para a análise que fiz de Primavera.... Mas a relação contrária também vale. Um dos temas do livro de Benedetti, o exílio, ilustra as condições em que o clássico de 1946 foi produzido, já que, alemão judeu, Auerbach estava exilado em Istambul após perder em 1935 seu cargo na Universidade de Marburg com a ascensão do Nazismo.
Para a Turquia Auerbach não pôde levar sua biblioteca pessoal – apenas alguma pequena parte – e, estando lá, não tinha mais acesso às bibliotecas nas quais poderia ter ampliado suas pesquisas. Assim, a limitação de ação proporcionada pelo exílio tomou parte da própria configuração da obra. Olha o que o próprio autor escreveu no epílogo do livro.
Aqui não há nenhuma biblioteca bem provida para estudos europeus; as comunicações internacionais estavam paralisadas; de tal forma que tive de renunciar a quase todas as publicações periódicas, à maioria das pesquisas mais recentes, e por vezes a edições críticas dos meus textos dignas de confiança. Portanto, é possível e até provável que muita coisa me tenha passado despercebida, muita coisa que deveria ter considerado e que, por vezes, afirme alguma coisa que tenha sido refutada ou modificada por pesquisas mais recentes. Espero que entre os prováveis erros não haja nenhum que afete o cerne do sentido das idéias expostas. Também é resultado da escassez de literatura especializada e de periódicos o fato de este livro não conter notas; afora os textos, cito relativamente pouca coisa, e este pouco deixou-se introduzir facilmente no texto. Aliás, é bem possível que este livro deva agradecer a sua existência precisamente à falta de uma grande biblioteca especializada; se tivesse podido informar-me a respeito de tudo o que foi feito acerca de tantos temas, talvez nunca tivesse chegado a escrevê-lo.
Um livro de filologia e literatura comparada escrito por um pesquisador no exílio em 1946 e um livro de ficção com personagens no exílio escrito em 1982 formaram a única bagagem literária levada durante minha viagem de final de ano entre 2010 e 2011. Apesar de ter sido um feriadão para relaxar no litoral sul de São Paulo e passar o ano novo no meio do mato, o episódio pessoal (ter que escrever a coluna com o que tinha em mãos) reproduz um pouco as condições de realização de Mimesis..., ainda que em uma escala reduzidíssima e bem menos dramática (meus maiores perseguidores foram os mosquitos pólvora). Enfim, se estivesse em casa, provavelmente escreveria outra coisa.
Referências:
Erich Auerbach. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2007 (1ª ed. 1946).
Mario Benedetti. Primavera com uma esquina rota. Madri, Espanha: Punto de Lectura, 2008.
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