quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Le Bain, do pintor impressionista Alfred Stevens

Manoel Herzog

Se não for algum trauma de infância, meu pejo em certas situações decorre possível da criação que me deu papai. Queria-me um gentleman, e mesmo se empenhou em tornar-me um, digo que não com absoluto insucesso. Tenho lá meus bons modos, por vezes pintalgados de qualquer má sorte, mas tenho.

O fato de papai ter rido, numa partida de bridge na casa do Comendador, de uma inusitada flatulência de mamãe creio tenha sido a principal razão. Mamãe empombou-se, descomposturou papai. Ainda o fez com mais empenho numa segunda situação, manhã de domingo no Golf Club, quando papai teve a vez, preparando uma tacada magistral, de produzir sua flatulência, com escândalo, para gáudio do Comendador, um homem divertidíssimo. Associo desde estes priscos tempos os produtos do corpo a qualquer vergonha, e vivo me furtando de produzi-los se não em isolamento absoluto.

Não acho que seja muito civilizado, mesmo é uma trava incompatível com um homem resolvido, como me pretendo. Invejo as pessoas resolvidas.

Houve um tempo de fausto, quando eu era rico. Morava então num flat belíssimo, cuja sala, ampla, abrigava até piano de cauda. Recebia, e com glamour. O namorado da filha, no primeiro dia em que me veio visitar, casa cheia, pediu pra usar o banheiro. Indiquei o lavabo da vasta sala onde todos privávamos. Havia um silêncio permeado por um Mozart que tocava baixinho. Ele entrou no toilette sem constrangimento algum, trancou-se e jactou uma urina produtiva, generosa, direto na água, ou seja, com mais estrépito. Deu descarga, lavou a mão, tudo de fora se percebia. Saiu indiferente e garboso. Mordi-me.

Findos os tempos de fausto, após a falência e o divórcio, recolhi-me num sala-living simpático, mas sem condição de abrigar piano de cauda. Em compensação, recebia bastante. Vários amores.

Minha dificuldade era chegar a intimidade com as amadas que permitisse usar a suíte contígua, coisa que só no casamento se tolera. Horrorizava-me ter uma explosão intestinal ouvida no quarto ao lado, ou mesmo um singelo assoar de nariz. Urinava sentado, e com a torneira aberta, por escamotear o barulho de minha jactância.

Em contrapartida, se avaro não me doava no amor a ponto de permitir minha intimidade escatológica devassada, adorava ouvir os ruídos das amadas. Tinha ereções. M. flatulava sem freios, parecia pouco ligar, impossível não saber que eu ouvia. A. urinava gostoso, excitava-me ouvir o jorro afrontando a louça, o papel sendo rasgado pra enxugar, a descarga. P. era finíssima, abria a torneira também. Era-me necessário por o copo na parede e colá-lo à orelha pra ouvir direito. Cada filigrana ouvida era um passeio no céu dos prazeres mais gozosos.  C. tinha feito um curso de boas maneiras pelo qual aprendera a não fazer ruído urinário. Não fazia de fato, nunca soube sua tática, recusava-se a contar.

Expostas premissas, faço um corte temporal e projeto-me a dias de hoje mirando o ponto de fuga de um horizonte belíssimo na capital das Minas Gerais, pra onde vim a buscar alguma esperança de revisitar a fortuna. Cidade querida, acolhe tão bem, a profusão de amigos se torna em disputa pra ver quem me hospeda.

Por força do complexo declinado no introito, de ter pudores com as secreções corporais, sempre que viajo gosto de reservar uma suitezinha básica num Sheraton da vida, onde me esbaldo solitário e inaudito entre as louças, bronzes e mármores. Em BH, se vou pra hotel tomam por desfeita. A acolhida generosa foi oportuna, não que eu tivesse qualquer limitação de me hospedar no Sheraton, em absoluto. Fico prazeroso nas casas dos amigos, com uma única ressalva: meu limite de contenção dos produtos do corpo raramente supera as 24 horas, e qualquer estadia por mais de dia se torna em constrangimento.

Uma vez ficamos na casa de praia da ilha de Angra dos Reis que o Comendador mantinha pra lazer eventual. Tolhido, pelos já expostos motivos, de usar os banheiros da vasta mansão, construída em área de preservação ambiental, eu me aliviava de fogos e lavas vulcânicas em alto-mar. Aprofundava-me nas verdes águas e lá ficava, olhando piedoso pra ilha como se a contemplasse. O prazer era o do alívio. Ocorreu de a esposa do Comendador, que lia na praia, colher na areia um cilindro de cor ocre, pelo que fez sérias admoestações. Acolhi sua indignação e perorei contra a sorte de farofeiros que empesteiam as praias do continente, essa gente que estraga a Natureza. Com um sorriso incompreensível, que só às grandes damas pertence, ela me disse, Aham.

Já por dois dias na casa de amigos, contido, apartado da sala de banhos, aproveitei o dia livre pra vagabundear solitário pelas ruas de BH. Tomei cerveja, bebida que tem o condão de me libertar um ventre prisioneiro. Almocei lautamente, tomei suco de mamão com laranja para acompanhar e, de sobremesa, uma barrinha de cereal deveras fibrosa. À primeira pontada desesperei-me, Onde agora. Rodoviária não sento, o restaurante cheio demais, na Praça da Liberdade, nome irônico, não tinha banheiro público e, tivesse, o próprio adjetivo "público" já me tolhia. “Há que ser privativo, e não público, o espaço da nossa individualidade”. Acho essa frase tão bonita.

Papai vem paulatinamente perdendo os atributos de gentleman. Outro dia, durante uma partida de gamão no salão de jogos, soltou-se desbragada e impunemente. Pra minha triste surpresa, mamãe, que passava, louvou aquela miséria, Nossa, meu velho, esse foi lindo. As coisas vieram piorando, os tempos de fausto se foram. Depois que o Comendador morreu, parece, tudo perdeu o glamour. Menos pra elegante viúva, que conservou-se em fausto graças a polpuda pensão que o Estado garantiu. Homem relevante, o Comendador.

A salvação se me apresentou na forma de arquitetura clássica. Edifícios belíssimos, outrora sedes de autarquias improdutivas, agora restaurados e ocupados pela nossa laboriosa iniciativa privada. Viraram institutos, ongs, espaços, etc, coisas utilíssimas, um uso bem mais digno que a inoperância do aparelho estatal. Tomei-me de simpatia por um prédio rosa, as colunas de capitólio compósito. Museu dos Metais, creio que era isso, mantido por uma mineradora ecológica que comia montanhas e era amiga do social e das crianças, outrora uma estatal falida e corrupta, hoje glória de um Brasil desenvolvimentista. Oxalá um dia libertem a petrolífera, qual fizeram com a mineradora, dela façam uma privada.

Depois de mirar brevemente drusas, turmalinas e citrinos, fora as animações de minas de ouro e ferro, assuntei com um distinto cidadão de terno e óculos escuros onde havia um water-closet. Levou-me a elegante recinto, marmóreo, grecolatino, discreto e, glória suprema, vazio. Inspecionei o reservado, um vaso elegante, totalmente higiênico. Sentei-me a ler um livro de poemas.

Certas epifanias fazem o tempo relativizar. Quando dei por mim tinha ido o claro do dia. Assustei-me com duas vozes, Inspecione o banheiro se tem alguém. O outro, maganão, respondia em delicioso sotaque das gentes da alterosas, gritando pra dentro do recinto, Ê, uai, tem alguém cagano.

Pressentindo a inexorável passagem de cronos, e o iminente fechamento do museu comigo dentro, achei de bom tom acusar minha presença, Ô, meu, tô aqui.

Os dois funcionários calaram, faltou-lhes o sangue às faces, olharam-se atônitos, ficaram temerosos, senti isso, que eu fosse me queixar à administração da mineradora. Não tinham estabilidade de funcionário público. Possivelmente de empresa terceirizada, ou seja, não eram da conta de ninguém, elimináveis sem custo feito moscas. Emprego não anda fácil.

Cumpri minha tarefa com garbo, um tanto pejado, e saí. À porta dois distintos cavalheiros esperavam-me, emparelhados. Brinquei pra espantar o triste da cena, Erguei vossas espadas e fazei uma abóbada de aço pra que eu passe.

Desci escadas acarpetadas de vermelho seguido por dois batedores, feito um papa. O museu brilhoso se apagava, seus cristais e metais. À suntuosa porta de entrada, uma senhora distintíssima, de cabelo violeta-prateado, conversava com outro guarda. Devia ser a presidente do museu, ou de alguma fundação. Olhou-me prendendo os lábios num sorriso cínico mais dúbio que o da Gioconda, e fez um leve meneio de cabeça, qual dissesse, Aê, ein. Tão parecida com a esposa do saudoso Comendador.


2 comentários:

  1. Brilhante. As palavras trabalhadas como numa oficina de burilar, mas sem perder a naturalidade de alguém que conta. A modificação do status social modificando também o vocábulo que escolhe o narrador, entre passado glamoroso e presente sem fausto. Crítica social e humor, duas marcas presentes na obra deste autor. Manoel Herzog é um mestre de nossa narrativa contemporânea.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom, Machado Herzog, quer dizer, Manoel Assis, digo...

    ResponderExcluir

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.