segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Detalhe de escultura no Cemitério do Araçá (fotografia de Maria Balé)


Por Maria Balé

O clima indeciso contamina as primeiras horas do dia. Os ares otimistas da manhã ensolarada se dissipam na medida em que se adensam nuvens, em ritmo acelerado. Sua ordem interna é a mesma de seu quarto. Roupas espalhadas, sapatos desencontrados. Brincos e colares se misturam aos papéis prateados dos bombons devorados ao longo das noites insones.

Os afazeres desconexos denunciam o deslocamento da sua existência que, viscosa, debate-se entre as vias estreitas do fluir das horas. As sombras rendadas do galho da buganvília, que entra pela janela, são rarefeitos sinais de um mundo para além da alvenaria que a encarcera.


Afrouxa a coleira da sua angústia e sai para um passeio. Toma o caminho do cemitério municipal, o maior da cidade, onde seguramente haverá quorum. A morbidez do programa ornamenta o seu espírito desalojado. Segue em frente. Caminha longa distância até o destino escolhido.


A poucos metros da entrada, constata que o recinto está lotado. Todas as salas do velório estão ocupadas. Detém-se na frente da primeira porta. Estranha porque ninguém chora. Passa para a segunda sala. Dores invisíveis não a seduzem. Procura por alguma lágrima. Enfim, um leve espasmo de comoção. Um rapaz, alto, forte, bonito e bem vestido, se esvai em choro diante da mãe morta. É um choro fácil, matemático. Não basta. Passa para a próxima, onde uma jovem de palidez marmórea tem a face desfigurada. Diante dela, jaz o marido, tão jovem quanto ela, cuja boca inerte e azulada ela beija com paixão.


— Enfarto fulminante. Morte instantânea. Oito segundos, do ataque, ao óbito —, ouve-se em conversas imprecisas. Morreu de morte boa, ela pensa, acomodando-se em um canto que garanta despercebida presença.


Os minutos se fazem horas. O tempo passa sem alusão à sua presença.


O caixão é levado para a parte que lhe cabe na tapeçaria do silêncio eterno. A jovem viúva permanece à beira da cova, paralisada. Obedecendo ao seu impulso primário, ela estende as mãos, oferecendo-lhe consolo, um afago talvez.


Olhos sem lágrimas, olhar distante, o vazio do mundo na solidão que ali impera. O abraço é longo. De súbito, o espectro da jovem se desprende e toma a direção contrária e desaparece ao longo do corredor de saída. Sem uma palavra.


O céu desonera-se do peso das nuvens carregadas. Ela caminha sem rumo, debaixo de muita água. Sua alma escorre na torrente de suas lágrimas.

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.