quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Alessandro Atanes, para o Portogente


Mario Vargas Llosa: "A literatura é um denominador comum da experiência humana"

Em junho do ano passado comentei A literatura em perigo, livro em que o lingüista búlgaro radicado na França Tzvetan Todorov manifesta sua preocupação quanto ao ensino de literatura, no qual, para ele, fala-se mais da crítica do que das obras, ou, numa metáfora mais festiva, trocam-se mais receitas que pedaços de bolo. Ali, usei o seguinte trecho de sua argumentação:

Ler poemas e romances não conduz à reflexão sobre a condição humana, sobre o indivíduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero, mas sobre as noções críticas, tradicionais ou modernas. Na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos.

Como uma resolução de ano novo, apresento hoje novos argumentos em defesa da literatura. Desta vez o autor deles é o romancista peruano Mario Vargas Llosa, autor do ensaio É possível pensar o mundo moderno sem o romance?, publicado agora no final de 2009 como introdução do primeiro volume de A cultura do romance, projeto idealizado e organizado por Franco Moretti que começa a ser publicado no Brasil.

Vargas Llosa apresenta uma situação que se repete em suas palestras e conferências: algum senhor se aproxima dele e pergunta se não poderia obter um autógrafo para sua esposa ou filha, “apaixonada por literatura”. Nestas situações o escritor costuma perguntar ao interlocutor: “E o senhor, não é? Não gosta de ler?”. E a resposta é sempre a mesma: “Bem, sim, claro que gosto, mas eu sou uma pessoa muito ocupada, sabe como é”.

Esse "sabe como é" revela um perigo para a literatura, isto é, a concepção “bastante difundida” de que ela é algo “de que se pode prescindir, um entretenimento (...) que pode ser sacrificado sem escrúpulos no momento de estabelecer uma escala de prioridades nos afazeres e compromissos indispensáveis da luta pela vida”. E a seguir, Vargas Llosa apresenta o argumento seminal do texto:

Me preocupo (...) pelos milhares de seres humanos que, podendo ler, renunciaram a fazer isso. Não só porque desconhecem o prazer que perdem, mas porque, de uma perspectiva menos hedonista, estou convencido que uma sociedade sem romances, ou na qual a literatura foi relegada, como certos vícios inconfessáveis – essa sociedade está condenada a se barbarizar no plano espiritual e a pôr em risco a própria liberdade.

Por mais que isso pareça elitista (sem contar que o peruano é um conservador politicamente), é esta a verdade: a literatura e a arte nos livram da barbárie. E ele formula uma boa razão para considerar a literatura, e particularmente os romances, “uma das ocupações mais estimulantes e fecundas da alma humana”: ela é um denominador comum da cultura.

Graças a ela, homens e mulheres de diversas origens e níveis sociais “podem coexistir, comunicar-se e sentir-se de algum modo solidários”. Isso pode até parecer bobinho, mas deve ser levado em conta, ressalta o autor, em um ambiente de especialização do conhecimento no qual a “ciência e a técnica não podem mais cumprir aquela função cultural integradora em nosso tempo, precisamente pela infinita riqueza de conhecimentos e da rapidez de sua evolução que levou à especialização e ao uso de vocabulários herméticos”, o que vem afetando até as disciplinas humanísticas. A partir daí ganha importância o papel de denominador comum:

A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhe determinam o horizonte. Nós, leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou Tolstoi, nos sentimos membros da mesma espécie porque, nas obras que eles criaram, aprendemos aquilo que partilhamos como seres humanos, o que permanece em todos nós além do amplo leque de diferenças que nos separam. E nada defende melhor os seres vivos contra a estupidez dos preconceitos, do racismo, da xenofobia, das obtusidades localistas do sectarismo religioso ou político, ou dos nacionalismos discriminatórios, do que a comprovação constante que sempre aparece na grande literatura: a igualdade essencial de homens e mulheres em todas as latitudes e a injustiça representada pelo estabelecimento entre eles de formas de discriminação. Nada, mais do que os bons romances, ensina a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do patrimônio humano e a valorizá-las como uma manifestação de sua múltipla criatividade. Ler boa literatura é divertir-se, com certeza; mas, também, aprender, dessa maneira direta e intensa que é a da experiência vivida através das obras de ficção, o que somos e como somos, em nossa integridade humana, com os nossos atos e os nossos sonhos e os nossos fantasmas, a sós e na urdidura das relações que nos ligam aos outros, em nossa presença pública e no segredo de nossa consciência, essa soma extremamente complexa de verdades contraditórias – como as chamava Isaiah Berlin –de que é feita a condição humana.

Bom ano novo e boas leituras!

Referências:
Mario Vargas Llosa. É possível pensar o mundo moderno sem o romance?. In: A cultura do romance (organizador Franco Moretti). Volume 1. Tradução Denise Bootman. São Paulo: Cosac Naify, 2009.


1 comentários:

  1. Nos momentos mais cruciais de minha vida, fui salva pela literatura (que escrevi ou que li).

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