Flávio Viegas Amoreira
As grandes cidades podem ser definidas por tropos de linguagem: metafóricas ou metonímicas. Segundo Aristóteles, em sua Poética, "a metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou de espécie para o gênero, ou da espécie de uma espécie da outra, ou por analogia".
Assim o Rio de Janeiro ou Santos que mimetizam, são analogicamente moldadas pela relação com grande elemento natural: Oceano-Mar. Já a metonímia responde a uma lógica de "parte pela parte", principalmente quando sugere a causa pelo efeito, o conteúdo pelo continente, o objeto pelo material de que é feito, quando figuramos algo por contigüidade a um signo que tudo nele conduz e desdobra resignificando. Conheço poucas megalópole tão "metonímicas" quanto Sampa: cinzenta, selva de concreto, veias urbanas sem topografia natural que a referencie: auto-gestada pela que se inventa e que reproduzida nos cadinhos nano-semânticos que a representam em seus infindamente polissêmicos construções hauridas do seu magma inorgânico constructo até o permeabilíssimo grau de experimentação de sua existência perpassando o fluído loucamente inconstante.
Sem linha de horizonte definida, mortos seus veios líquidos sem refletir-se em nada além do gigantismo espelhado, - é a única grande metrópole mundial sem condução geológica que a conduza ou se interponha assente inconsútil. O declive da Consolação já não perceptível dispunha-se em charco, lamaçal, espraindo-se por madeirames que sustinham as veredas que sustinham a primeva capelinha que sustentava-se pelo apoucado povoado de devotos desse paradeiro remoto que servia de passagem aos campos da Marquesa, do General Arouche e Dona Verediana. Campos de chá, prados de Pinheiros e a elevação tímida de Higienópolis. Ainda hoje faz-se oásis com ares de província acanhada com badalo de coreto sacralizando o gozozo profano profundo do entorno. Descendo o insosso caminho que nada oferece além da paz de cemitério, impacta ao desavisado o feixo que como um Aleph verticalizado esquadrinha-se pela urgência afrontosa do Itália, o Hilton e o sobranceiro Copan, mítico, farol laico a essa civilização fractada e convergente denominada São Paulo, que honra o santo que a denomina: o evangelista dizia: "a criação geme com dores de parto".
Ela, macunaímica, é como o capitalismo: "destruição criativa" no tratado de Schumpeter. Igreja e o egíptico, babélico prédio de Oscar Niemeyer, tem só meio século a menos que a igrejinha. São Paulo é milenar sendo só presentificada: infinitiza-se pela escala de seu descalabro, apenas deixa maturando o que Drummond dizia na Máquina do Mundo: Sampa tem estrutura duma carreira de fótons que se apóiam num átimo no "sono rancoroso dos minérios". A arquitetura não assoberba, é ela em sua bruteza que amacia a absurdez do homem sonâmbulo pela noite interrrompida do Tempo.
O Copan contêm Sampa: é seu acelerador de partículas: simula em sinédoque rumores, partida e surgimentos, o espreitar do espaço sombreando onduloso a impossibilidade do Devir ser retido na provisoriedade de nosso precário questionamento. O Copan é o grande monte, Baal, o ponto de inferência e interrogante que aponta ao nosso destino bussolar algum nexo de caminhamento. "Na Arte só existe uma coisa válida, aquela que não se pode explicar." - diz mestre Braque, nessa tentativa de tatear encontrando mais uma grota depois de ter vencido precipícios que faço o "link" entre Sampa e o Copan, apartir de um artista que nele vive e o usa como suporte-totêmico de suas experimentações e grafismos que remetem ao urbano refazendo o mítico perdido ou esvaído. A mostra Mar, Madeira e outros animais de Maurício Adinolfi remeteu ao crítico Frederic Rossif sobre o mesmo Braque: "Uma pedra o comove tanto quanto um rosto. Ele tem um gosto muito pronunciado pela matéria. Introduz-nos nos mares contidos em cada pedra ou madeirame / usa materiais como areia em seus quadros / serra de lenha ainda viva e limanha de ferro. Nele é cor dependente da matéria".
Já tinha escrito sobre Adinolfi sobre Cores no Dique: corporalidade, mais! fisicalidade que ele estabelece e propõem com próprio território onde instala um imaginário sobressalente e intimidade com matéria-prima: ela mesma metalinguagem ulterior das obras: folhas de madeirite, "trens" descartados pelo mercado e refeitos para Arte, além do telurismo incorporado a uma comunidade no banhado ou uma cunha iluminada no mais emblemático "corpus vivendi" de Sampa. O hibridismo dum artista-filósofo que tem como matrizes o Oceano-Mar e a percepção de dissolvência humana na megalópole elaboram um "mix" raro que reintegra duas atmosferas apartadas apenas por 80 quilômetros pela grande muralha. É artista da sutileza neural, mas da "mão-na-massa", mesmo telurismo de Pablo Ruiz unindo o vórtice entre Málaga, a ancestralidade cartaginesa, as máscaras africanas e os atavios marítimos genoveses que redundaram em Picasso. Sua telas remetem além da "veneziana pública" por entranhas no aterraçado do Copan, aos monos que refletem toda tentativa ainda cuneiforme na mente do artista de lançar-se ao compreeendimento aproximadamente totalizante: assim Picasso com Família do acrobata com macaco e o conto de Kafka: Um chipanzé na Academia. A tríade de instalações mais pinturas de Maurício Adinolfi no Copan, exigiram releitura do mestre Ernst Fischer, no clássico A necessidade da Arte.
O mesmo espírito que se sentiu impelido a cromatizar habitações nos manguezais santenses, viu-se argüindo no cerne vibrátil de Sampa a conurbação adensada e a convivência fugidia: como diz Alfredo Bosi de Volpi: "Por que separar forma abstrata e acontecimento vivido"? O cortinado de madeirame, as ripas em soltura, as telas com monos em riste e risco, foram saindo da concreção em minha visita solitária pelos intestinos da hidra para já "maturados" de dias de apropiação pública e o limar volúvel do Tempo, toldarem-se e formarem em minha retinas nunca cansadas num 'corpus mutantis" que carreguei num comprometimento "sui-generis": quando volto-me e noto que não são as colunas de Lot salinizadas: a instalação me redimiram de impasses geográficos que atormentavam minha sentimentalidade: afinal onde Sampa e Mar: por quê retinir no cérebro essa dicotomias se elementos hercúleos podem me fazer forte carregando um Atlas mais potente de sensorialidades sem exclusões empobrecedoras.
"Onde o mundo interior e o exterior se tocam, aí se encontra o centro da Alma". Essa máxima de Novalis fala de Adinolfi e seu crescendo em tela ou arte que prefiro chamar de "interativa" além de tão somente pública: ele não é catalogável nesse "tão somente" que doutra sorte seria vicioso...
Ali vertido em anjo catapultado serra acima alinhavei essa clivagem, influxo: rescendia a maresia o centrão plúmbeo de São Paulo. Sem grandiloqüência, o artista partejou-me epifania: tocou-me, esta tencionada a razão da obra pela peculiaridade não deliberada, mas movida num interpretante que move-se "mardeirando-se" num chão de ferro inconcluso. O Copan em minha vida pessoal traz à lembrança meu conterrâneo Plínio Marcos e o escritor João Silvério Trevisan, que o imortalizou num conto exemplar. Já cerca vinte anos de estreitamento e fui verificando ser ele mesmo o grande laboratório para aquilo que em 2002, a curadora francesa Catherine David chamou de "mapeamento de poéticas contemporâneas": poética do ajanelar-se, do avizinhamento como primeiros passos para rastreamento da produção cultural da cidade. Catherine David foi a primeira mulher curadora da Documenta X: mais importante mostra de artes plásticas do mundo, e nos fala da importância de morar! ter aproximação sanguínea com objeto de experimentação: e qual estamento arquitetônico propiciaria essa visão de Sampa? A locação num ap. no Copan: "O Copan, por sua situação complexa e localização privilegiada, exige uma pluralidade de ações e pesquisas". Aquela movimentação toda do fim dos anos 80 que vi em Barcelona e Paris, os denominados "squats", coletivos de artistas que ocupam edifícios abandonados, seriam redifinidos em bases burocráticas, sem "espontaneísmo" que supera qualquer "porraloquice" dos já batidos "squats". Tanto as ocupações "squats", quanto importante "residência" de Chaterine David e o filósofo Peter Pelbart, perdem de longe para "visceralidade" da permanência de Adinolfi e criação dentro e apartir dessa mesma permanência cuidosamente polida, no calor da ceifa e azáfama quotidiana do segador ou semeador de "perceptos perpassantes" de seu trajeto e traçado. Em Mar, Madeira existe o que Hegel dizia ser a "verídica totalidade" do seu conteúdo, o "individual natural imediato e o individual espiritual" na subjetivando-se nessa residência na "unidade negativa" imbricando-se. Segue Hegel adequadíssimo ao "opus- Copan" de Adinolfi:
Substancialidade sem precisão: esse êxito do "mardeirame" que nos sustêm ali não atônitos, mas achegando-se ao encantamento que não se vertiginiza pela verticalidade: um "aleph" contendo como bonecas russas a edificação e essa como "tubo-de-ensaio" a "Sampauleira" de todo dia e gente. As ripas recolhidas como num "lego-logos" aparentemente arbitrário nos lados do centro velho ou Santa Cecília, não criaram "solução de continuidade" "estanque": há visível sobreposição, mas sem acanhamento à frontaria de entrada original do edifício: o esquadrinhamento contraria e mais a frente na perspectiva dum ângulo insólito reverbera a construção e a expressão de efeito único : "o que nas oficinas se elabora, / o que pensado foi e logo atinge / distância superior ao pensamento (...) tudo se apresentou nesse relance" - assim Drummond de A máquina do mundo cabe na máquina de procedimentos artísticos raros de Maurício Adinolfi. E nele, essa elaboração com o táctil do artesão com as sinapses nervosas do pensador respondem a essa necessidade "rilkeana" de viver artisticamente como sugere forte o dizer de Kandinsky: "Todos os procedimentos são sagrados desde que satisfaçam a uma necesside interior". E como essa necessidade é eivada de força, potência e consistência na transposição de objetos soltos e salteados para o mural que se afixava nessa Chartres laica: o Copan pelo intento, lucidamente metamofoseado pelo artista-morador. Para ilustrar ainda mais o efeito alegórico da instalação recorro às elocubrações de Le Corbusier até a cabana de madeira elaborada por Gropius, pai da Bauhaus: habitabilidade, "protegimento", todos esses analisados pelo teórico da arquitetura, Joseph Rykwert em seu enriquecedor A Casa de Adão no Paraíso. Nos falando da "casa primordial", ele nos traz a função seminal da moradia, vista por Adinolfi em seu intróito: "edifício ideal que existiu antes dos tempos, quando o homem sentia-se inteiro em sua casa, e sua casa era tão justa quanto a própria natureza". Esse molde introduzido no projeto de Niemeyer é também reflexão mesma sobre 'convivenciabilidade" heterológica e a ética do abrigo compartilhado: a Arte pensa o cotidiano aprofundante.
A imagem nunca é completa seja de quem avista ou se debruça sobre o alhambrado escorrente: Mar, Madeira não é peremptório como a prosa por não ser afirmativo, mas evocatório feito a poética do espaço fractado, ainda que de opacidade afixada, não determinativa. É o cruzamento do "ethos" e "habitus" encilhados pelo "homo faber" que translança a marinidade ao púlpito, o corrosivo ao pétreo. Tensionamento, "mapas alterados" como vi na Bienal de Curitiba, onde o trabalho do artista japonês radicado em Berlim Yukihiro Taguchi é um dos referentes que aproximam-me desse Space Invaders de Maurício Adinolfi nesse Copan "onirissisado" que mora por dentro do olhar desse coração atlântico. Num brilhante ensaio de Guilherme Bueno sobre Milton Machado ele reproduz palavra de Diderot sobre o homem em sua passagem observante para a figura do artista:
Que escala quis o artista afrontar? A do artista maior que o peso da demanda do mundo: o excesso alí no pórtico, na arcada que assim explica Bachelard: "Às vezes a imagem é muito discreta, sensível apenas, mas age. Ela diz do isolamento do ser debruçado sobre si mesmo (..) a imagem ganha sua força por efeito de um isoformismo: em seus mil alvéolos , o espaço retém o tempo comprimido...". Essa suspensão de quem "lê uma casa", "lê um quarto", agora lê a suspensão do Tempo em sua verticalidade vocativamente literal. "Clama o homem a um heroísmo do cosmos. É um instrumento que serve para enfrentar o cosmo". O Copan é aí: aquele não-eu, Eu: o que corporifica para nós todos a interrogação erigida.
"A miniatura é um exercício de frescor metafísico". A madeira em sua porosidade de sino-paciência, os quadros de símios cambiantes, essas carrancas em goiva pedem Rilke: "O mundo é grande, mas em nós ele é profundo como o mar". Se em alguma parte de Sampa senti familiaridade com o profundo foi na visitação ao "set" montado por Adinolfi em Sobre Mar, madeira...
Liquefez? nada! tornou-se contrafacção do meu intento de perturbar a espacialidade que está na base dos meus temores da tal "compreenssibilidade". Balaustrada sobre o mar que voga em naus paulicéias. Rendilhados ao sangue que viceja entre suas vísceras de sangue e batimento constantemente renovado. Telas com toda vitalidade primitiva dos animais que nos habitam mesmo sob a patina de nossa civilização em escombros disfarçados de progresso.
... andaime, saibro, argamassa
Que ilha no mundo nasceu?
Que esfinge esfarelou?
Que pintura foi atual?
Que formalismo, que abstrato
Anseiam por transmitir-se
Jorge de Lima, A invenção de orfeu
As grandes cidades podem ser definidas por tropos de linguagem: metafóricas ou metonímicas. Segundo Aristóteles, em sua Poética, "a metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou de espécie para o gênero, ou da espécie de uma espécie da outra, ou por analogia".
Assim o Rio de Janeiro ou Santos que mimetizam, são analogicamente moldadas pela relação com grande elemento natural: Oceano-Mar. Já a metonímia responde a uma lógica de "parte pela parte", principalmente quando sugere a causa pelo efeito, o conteúdo pelo continente, o objeto pelo material de que é feito, quando figuramos algo por contigüidade a um signo que tudo nele conduz e desdobra resignificando. Conheço poucas megalópole tão "metonímicas" quanto Sampa: cinzenta, selva de concreto, veias urbanas sem topografia natural que a referencie: auto-gestada pela que se inventa e que reproduzida nos cadinhos nano-semânticos que a representam em seus infindamente polissêmicos construções hauridas do seu magma inorgânico constructo até o permeabilíssimo grau de experimentação de sua existência perpassando o fluído loucamente inconstante.
Sem linha de horizonte definida, mortos seus veios líquidos sem refletir-se em nada além do gigantismo espelhado, - é a única grande metrópole mundial sem condução geológica que a conduza ou se interponha assente inconsútil. O declive da Consolação já não perceptível dispunha-se em charco, lamaçal, espraindo-se por madeirames que sustinham as veredas que sustinham a primeva capelinha que sustentava-se pelo apoucado povoado de devotos desse paradeiro remoto que servia de passagem aos campos da Marquesa, do General Arouche e Dona Verediana. Campos de chá, prados de Pinheiros e a elevação tímida de Higienópolis. Ainda hoje faz-se oásis com ares de província acanhada com badalo de coreto sacralizando o gozozo profano profundo do entorno. Descendo o insosso caminho que nada oferece além da paz de cemitério, impacta ao desavisado o feixo que como um Aleph verticalizado esquadrinha-se pela urgência afrontosa do Itália, o Hilton e o sobranceiro Copan, mítico, farol laico a essa civilização fractada e convergente denominada São Paulo, que honra o santo que a denomina: o evangelista dizia: "a criação geme com dores de parto".
Mar, madeira e outros animais no Copan em São Paulo
Ela, macunaímica, é como o capitalismo: "destruição criativa" no tratado de Schumpeter. Igreja e o egíptico, babélico prédio de Oscar Niemeyer, tem só meio século a menos que a igrejinha. São Paulo é milenar sendo só presentificada: infinitiza-se pela escala de seu descalabro, apenas deixa maturando o que Drummond dizia na Máquina do Mundo: Sampa tem estrutura duma carreira de fótons que se apóiam num átimo no "sono rancoroso dos minérios". A arquitetura não assoberba, é ela em sua bruteza que amacia a absurdez do homem sonâmbulo pela noite interrrompida do Tempo.
O Copan contêm Sampa: é seu acelerador de partículas: simula em sinédoque rumores, partida e surgimentos, o espreitar do espaço sombreando onduloso a impossibilidade do Devir ser retido na provisoriedade de nosso precário questionamento. O Copan é o grande monte, Baal, o ponto de inferência e interrogante que aponta ao nosso destino bussolar algum nexo de caminhamento. "Na Arte só existe uma coisa válida, aquela que não se pode explicar." - diz mestre Braque, nessa tentativa de tatear encontrando mais uma grota depois de ter vencido precipícios que faço o "link" entre Sampa e o Copan, apartir de um artista que nele vive e o usa como suporte-totêmico de suas experimentações e grafismos que remetem ao urbano refazendo o mítico perdido ou esvaído. A mostra Mar, Madeira e outros animais de Maurício Adinolfi remeteu ao crítico Frederic Rossif sobre o mesmo Braque: "Uma pedra o comove tanto quanto um rosto. Ele tem um gosto muito pronunciado pela matéria. Introduz-nos nos mares contidos em cada pedra ou madeirame / usa materiais como areia em seus quadros / serra de lenha ainda viva e limanha de ferro. Nele é cor dependente da matéria".
Já tinha escrito sobre Adinolfi sobre Cores no Dique: corporalidade, mais! fisicalidade que ele estabelece e propõem com próprio território onde instala um imaginário sobressalente e intimidade com matéria-prima: ela mesma metalinguagem ulterior das obras: folhas de madeirite, "trens" descartados pelo mercado e refeitos para Arte, além do telurismo incorporado a uma comunidade no banhado ou uma cunha iluminada no mais emblemático "corpus vivendi" de Sampa. O hibridismo dum artista-filósofo que tem como matrizes o Oceano-Mar e a percepção de dissolvência humana na megalópole elaboram um "mix" raro que reintegra duas atmosferas apartadas apenas por 80 quilômetros pela grande muralha. É artista da sutileza neural, mas da "mão-na-massa", mesmo telurismo de Pablo Ruiz unindo o vórtice entre Málaga, a ancestralidade cartaginesa, as máscaras africanas e os atavios marítimos genoveses que redundaram em Picasso. Sua telas remetem além da "veneziana pública" por entranhas no aterraçado do Copan, aos monos que refletem toda tentativa ainda cuneiforme na mente do artista de lançar-se ao compreeendimento aproximadamente totalizante: assim Picasso com Família do acrobata com macaco e o conto de Kafka: Um chipanzé na Academia. A tríade de instalações mais pinturas de Maurício Adinolfi no Copan, exigiram releitura do mestre Ernst Fischer, no clássico A necessidade da Arte.
A desconfiança do artista acerca de tudo o que é fácil, apuradinho e agradável impele-o para a austeridade e para a dureza, para um arcaísmo que recusa lisonjear os sentidos (...) a recusa de superfície brilhantes, o desejo de colher a estrutura das coisas, a sua permanência e não o momento passageiro. A concentração formal torna-se um fim; a obra do artista tenta comover "diretamente" tal como a música ou a poesia, menos pelo tema do que pela forma.
O mesmo espírito que se sentiu impelido a cromatizar habitações nos manguezais santenses, viu-se argüindo no cerne vibrátil de Sampa a conurbação adensada e a convivência fugidia: como diz Alfredo Bosi de Volpi: "Por que separar forma abstrata e acontecimento vivido"? O cortinado de madeirame, as ripas em soltura, as telas com monos em riste e risco, foram saindo da concreção em minha visita solitária pelos intestinos da hidra para já "maturados" de dias de apropiação pública e o limar volúvel do Tempo, toldarem-se e formarem em minha retinas nunca cansadas num 'corpus mutantis" que carreguei num comprometimento "sui-generis": quando volto-me e noto que não são as colunas de Lot salinizadas: a instalação me redimiram de impasses geográficos que atormentavam minha sentimentalidade: afinal onde Sampa e Mar: por quê retinir no cérebro essa dicotomias se elementos hercúleos podem me fazer forte carregando um Atlas mais potente de sensorialidades sem exclusões empobrecedoras.
"Onde o mundo interior e o exterior se tocam, aí se encontra o centro da Alma". Essa máxima de Novalis fala de Adinolfi e seu crescendo em tela ou arte que prefiro chamar de "interativa" além de tão somente pública: ele não é catalogável nesse "tão somente" que doutra sorte seria vicioso...
Ali vertido em anjo catapultado serra acima alinhavei essa clivagem, influxo: rescendia a maresia o centrão plúmbeo de São Paulo. Sem grandiloqüência, o artista partejou-me epifania: tocou-me, esta tencionada a razão da obra pela peculiaridade não deliberada, mas movida num interpretante que move-se "mardeirando-se" num chão de ferro inconcluso. O Copan em minha vida pessoal traz à lembrança meu conterrâneo Plínio Marcos e o escritor João Silvério Trevisan, que o imortalizou num conto exemplar. Já cerca vinte anos de estreitamento e fui verificando ser ele mesmo o grande laboratório para aquilo que em 2002, a curadora francesa Catherine David chamou de "mapeamento de poéticas contemporâneas": poética do ajanelar-se, do avizinhamento como primeiros passos para rastreamento da produção cultural da cidade. Catherine David foi a primeira mulher curadora da Documenta X: mais importante mostra de artes plásticas do mundo, e nos fala da importância de morar! ter aproximação sanguínea com objeto de experimentação: e qual estamento arquitetônico propiciaria essa visão de Sampa? A locação num ap. no Copan: "O Copan, por sua situação complexa e localização privilegiada, exige uma pluralidade de ações e pesquisas". Aquela movimentação toda do fim dos anos 80 que vi em Barcelona e Paris, os denominados "squats", coletivos de artistas que ocupam edifícios abandonados, seriam redifinidos em bases burocráticas, sem "espontaneísmo" que supera qualquer "porraloquice" dos já batidos "squats". Tanto as ocupações "squats", quanto importante "residência" de Chaterine David e o filósofo Peter Pelbart, perdem de longe para "visceralidade" da permanência de Adinolfi e criação dentro e apartir dessa mesma permanência cuidosamente polida, no calor da ceifa e azáfama quotidiana do segador ou semeador de "perceptos perpassantes" de seu trajeto e traçado. Em Mar, Madeira existe o que Hegel dizia ser a "verídica totalidade" do seu conteúdo, o "individual natural imediato e o individual espiritual" na subjetivando-se nessa residência na "unidade negativa" imbricando-se. Segue Hegel adequadíssimo ao "opus- Copan" de Adinolfi:
Graças a um autêntico o substancial e que a existência limitada e mudável adquire, por sua vez, autonomia e substancialidade, e deste modo a precisão, a profundidade e um conteúdo rigorosamente definido e substancial acham-se simultaneamente realizados, o que dá à existência a possibilidade de se manifestar, através do seu conteúdo limitado, como universal, e ao mesmo tempo, como uma alma que se conserva o "quanto a si".
Substancialidade sem precisão: esse êxito do "mardeirame" que nos sustêm ali não atônitos, mas achegando-se ao encantamento que não se vertiginiza pela verticalidade: um "aleph" contendo como bonecas russas a edificação e essa como "tubo-de-ensaio" a "Sampauleira" de todo dia e gente. As ripas recolhidas como num "lego-logos" aparentemente arbitrário nos lados do centro velho ou Santa Cecília, não criaram "solução de continuidade" "estanque": há visível sobreposição, mas sem acanhamento à frontaria de entrada original do edifício: o esquadrinhamento contraria e mais a frente na perspectiva dum ângulo insólito reverbera a construção e a expressão de efeito único : "o que nas oficinas se elabora, / o que pensado foi e logo atinge / distância superior ao pensamento (...) tudo se apresentou nesse relance" - assim Drummond de A máquina do mundo cabe na máquina de procedimentos artísticos raros de Maurício Adinolfi. E nele, essa elaboração com o táctil do artesão com as sinapses nervosas do pensador respondem a essa necessidade "rilkeana" de viver artisticamente como sugere forte o dizer de Kandinsky: "Todos os procedimentos são sagrados desde que satisfaçam a uma necesside interior". E como essa necessidade é eivada de força, potência e consistência na transposição de objetos soltos e salteados para o mural que se afixava nessa Chartres laica: o Copan pelo intento, lucidamente metamofoseado pelo artista-morador. Para ilustrar ainda mais o efeito alegórico da instalação recorro às elocubrações de Le Corbusier até a cabana de madeira elaborada por Gropius, pai da Bauhaus: habitabilidade, "protegimento", todos esses analisados pelo teórico da arquitetura, Joseph Rykwert em seu enriquecedor A Casa de Adão no Paraíso. Nos falando da "casa primordial", ele nos traz a função seminal da moradia, vista por Adinolfi em seu intróito: "edifício ideal que existiu antes dos tempos, quando o homem sentia-se inteiro em sua casa, e sua casa era tão justa quanto a própria natureza". Esse molde introduzido no projeto de Niemeyer é também reflexão mesma sobre 'convivenciabilidade" heterológica e a ética do abrigo compartilhado: a Arte pensa o cotidiano aprofundante.
A imagem nunca é completa seja de quem avista ou se debruça sobre o alhambrado escorrente: Mar, Madeira não é peremptório como a prosa por não ser afirmativo, mas evocatório feito a poética do espaço fractado, ainda que de opacidade afixada, não determinativa. É o cruzamento do "ethos" e "habitus" encilhados pelo "homo faber" que translança a marinidade ao púlpito, o corrosivo ao pétreo. Tensionamento, "mapas alterados" como vi na Bienal de Curitiba, onde o trabalho do artista japonês radicado em Berlim Yukihiro Taguchi é um dos referentes que aproximam-me desse Space Invaders de Maurício Adinolfi nesse Copan "onirissisado" que mora por dentro do olhar desse coração atlântico. Num brilhante ensaio de Guilherme Bueno sobre Milton Machado ele reproduz palavra de Diderot sobre o homem em sua passagem observante para a figura do artista:
Eu assevero que um ser que existe em qualquer parte e que não corresponde a nenhum ponto do espaço; um ser que não tem extensão e que ocupa a extensão; que está absolutamente inteiro em cada parte dessa extensão; que difere essencialmente da matéria e que está unido a ela; que a segue e move sem se mover; que age sobre ele e dela sofre todas as vicissitudes; um ser do qual eu não tenho a menor idéia; um ser de uma natureza tão contraditória é difícil de admitir.
Que escala quis o artista afrontar? A do artista maior que o peso da demanda do mundo: o excesso alí no pórtico, na arcada que assim explica Bachelard: "Às vezes a imagem é muito discreta, sensível apenas, mas age. Ela diz do isolamento do ser debruçado sobre si mesmo (..) a imagem ganha sua força por efeito de um isoformismo: em seus mil alvéolos , o espaço retém o tempo comprimido...". Essa suspensão de quem "lê uma casa", "lê um quarto", agora lê a suspensão do Tempo em sua verticalidade vocativamente literal. "Clama o homem a um heroísmo do cosmos. É um instrumento que serve para enfrentar o cosmo". O Copan é aí: aquele não-eu, Eu: o que corporifica para nós todos a interrogação erigida.
"A miniatura é um exercício de frescor metafísico". A madeira em sua porosidade de sino-paciência, os quadros de símios cambiantes, essas carrancas em goiva pedem Rilke: "O mundo é grande, mas em nós ele é profundo como o mar". Se em alguma parte de Sampa senti familiaridade com o profundo foi na visitação ao "set" montado por Adinolfi em Sobre Mar, madeira...
Liquefez? nada! tornou-se contrafacção do meu intento de perturbar a espacialidade que está na base dos meus temores da tal "compreenssibilidade". Balaustrada sobre o mar que voga em naus paulicéias. Rendilhados ao sangue que viceja entre suas vísceras de sangue e batimento constantemente renovado. Telas com toda vitalidade primitiva dos animais que nos habitam mesmo sob a patina de nossa civilização em escombros disfarçados de progresso.
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