Alessandro Atanes, para a coluna Porto Literário do PortoGente
Após recente arrumação de gavetas trouxe para a pilha de leituras do dia um exemplar da edição de agosto de 1999 da revista Cult. Eu o havia lido lá já no século passado, quando linguiça se escrevia com trema. Na capa, Jorge Luis Borges tomando creio que um café com leite e a manchete “BORGES os labirintos da escrita”, dossiê da edição de aniversário (Ano III, R$ 4,50). Era o ano do centenário de seu nascimento.
A ocasião do tema foi a publicação em português no Brasil das Obras Completas do autor argentino, que naquele momento chegava ao terceiro volume. O dossiê tem início com um testemunho do assessor editorial da empreitada, Jorge Schwartz, no qual registra a estratégia, táticas, opções, cuidados e ciladas no percurso da equipe de tradutores, entre os quais o próprio Schwartz, que também atou na revisão.
Nem me lembrava desse texto sobre tradução pois a distante leitura do dossiê já havia se diluído em uma década de leituras do Borges. Mas a releitura me trouxe algumas reflexões devido às traduções do espanhol que venho publicando em minha coluna Porto Literário e aqui na Revista Pausa.
Não cabe aqui uma análise de todo o relato, então limito a exposição a presentar algumas ideias de Borges sobre o que ele mesmo escreveu sobre traduzir. Logo no começo Schwartz enumera textos em que o autor argentino comenta traduções e, além disso, reflete sobre a transposição de textos entre culturas e contextos, um campo sem fórmulas, ainda que com regras (assim como as crianças têm como regra levar a brincadeira à sério).
Um deles é As versões homéricas, do livro Discussão (1932), incluído no volume I das Obras Completas. No prólogo Borges trata o texto como “minhas primeiras letras – que não creio um dia ascendam a segundas – de helenista divinatório”. Seu texto se inicia conformado com a grandeza da tarefa tradutória:
Do mesmo parágrafo inicial, Schwartz cita o trecho final em que se mostra uma das principais características das escritura de Borges, a reescrita e a leitura como forma de escrita.
Agora, para ilustrar a transposição de contextos, o argumento do conto A procura de Averróis, do clássico O Aleph (1949). Ali, o filósofo protagonista tem um problema, comentar a obra de Aristóteles. Sem conhecer as línguas siríaca ou grega, o pensador tinha acesso ao clássico autor de Retórica em árabe por meio de traduções de traduções, sem contar que havia 14 séculos que separavam os dois no tempo.
O problema em si se apresenta em outro texto, a Poética. Imerso na cultura islã da Córdoba medieval, onde não se conhecia a ideia de teatro e drama, o filósofo não consegue encontrar significado para duas palavras fundamentais do tratado, tragédia e comédia.
Ainda que elevado à expressão máxima neste conto filosófico, é esse “processo de derrota” do quê o narrador chama a tradução, isto é, sempre haverá algo inatingível na transposição de textos entre duas línguas (também nas trocas culturais).
Mas isso não é motivo para lamentação. Nessa resenha em português do Brasil, Borges, um argentino do século XX, escreve em espanhol um conto em que traz para a ficção um filósofo espanhol do século XII de expressão árabe que, por sua vez, foi um dos principais responsáveis no Ocidente pela difusão – e da sobrevivência – do pensamento aristotélico, ainda que Averróis não entendesse a língua em que se expressava o grego Aristóteles do século IV antes de Cristo.
Volto ao parágrafo inicial de As versões homéricas:
Mesmo com todas as dificuldades, ali afirma-se que, além das questões técnicas, a passagem é possível. O conto de Bogres demonstra isso. Em formato alegórico, ele contém mais de dois mil anos de uma história das traduções.
Referências:
Jorge Schwartz. Traduzir Borges. Cult – Revista Brasileira de Literatura. Ano III, nº 25. Lemos Editorial, agosto de 1999, pp. 40-50.
Jorge Luis Borges. As versões homéricas. In: Discussão. In: Obras Completas; Volume I. São Paulo: Globo, 1998.
Jorge Luis Borges. A procura de Averróis. In: O Aleph. In: Obras Completas; Volume I. São Paulo: Globo, 1998.
Após recente arrumação de gavetas trouxe para a pilha de leituras do dia um exemplar da edição de agosto de 1999 da revista Cult. Eu o havia lido lá já no século passado, quando linguiça se escrevia com trema. Na capa, Jorge Luis Borges tomando creio que um café com leite e a manchete “BORGES os labirintos da escrita”, dossiê da edição de aniversário (Ano III, R$ 4,50). Era o ano do centenário de seu nascimento.
A ocasião do tema foi a publicação em português no Brasil das Obras Completas do autor argentino, que naquele momento chegava ao terceiro volume. O dossiê tem início com um testemunho do assessor editorial da empreitada, Jorge Schwartz, no qual registra a estratégia, táticas, opções, cuidados e ciladas no percurso da equipe de tradutores, entre os quais o próprio Schwartz, que também atou na revisão.
Nem me lembrava desse texto sobre tradução pois a distante leitura do dossiê já havia se diluído em uma década de leituras do Borges. Mas a releitura me trouxe algumas reflexões devido às traduções do espanhol que venho publicando em minha coluna Porto Literário e aqui na Revista Pausa.
Não cabe aqui uma análise de todo o relato, então limito a exposição a presentar algumas ideias de Borges sobre o que ele mesmo escreveu sobre traduzir. Logo no começo Schwartz enumera textos em que o autor argentino comenta traduções e, além disso, reflete sobre a transposição de textos entre culturas e contextos, um campo sem fórmulas, ainda que com regras (assim como as crianças têm como regra levar a brincadeira à sério).
Um deles é As versões homéricas, do livro Discussão (1932), incluído no volume I das Obras Completas. No prólogo Borges trata o texto como “minhas primeiras letras – que não creio um dia ascendam a segundas – de helenista divinatório”. Seu texto se inicia conformado com a grandeza da tarefa tradutória:
Nenhum problema tão consubstancial com as letras e seu modesto mistério como o que propõe uma tradução.
Do mesmo parágrafo inicial, Schwartz cita o trecho final em que se mostra uma das principais características das escritura de Borges, a reescrita e a leitura como forma de escrita.
O que são as versões da Ilíada (...) senão diversas perspectivas de um fato móvel, senão um longo lance experimental de omissões e de ênfases? (...) Pressupor que toda recombinação é obrigatoriamente inferior a seu original, é pressupor que o rascunho 9 é obrigatoriamente inferior ao rascunho H – já que não pode haver senão rascunhos. O conceito de texto definitivo não corresponde senão à religião ou ao cansaço.
Agora, para ilustrar a transposição de contextos, o argumento do conto A procura de Averróis, do clássico O Aleph (1949). Ali, o filósofo protagonista tem um problema, comentar a obra de Aristóteles. Sem conhecer as línguas siríaca ou grega, o pensador tinha acesso ao clássico autor de Retórica em árabe por meio de traduções de traduções, sem contar que havia 14 séculos que separavam os dois no tempo.
O problema em si se apresenta em outro texto, a Poética. Imerso na cultura islã da Córdoba medieval, onde não se conhecia a ideia de teatro e drama, o filósofo não consegue encontrar significado para duas palavras fundamentais do tratado, tragédia e comédia.
Ainda que elevado à expressão máxima neste conto filosófico, é esse “processo de derrota” do quê o narrador chama a tradução, isto é, sempre haverá algo inatingível na transposição de textos entre duas línguas (também nas trocas culturais).
Mas isso não é motivo para lamentação. Nessa resenha em português do Brasil, Borges, um argentino do século XX, escreve em espanhol um conto em que traz para a ficção um filósofo espanhol do século XII de expressão árabe que, por sua vez, foi um dos principais responsáveis no Ocidente pela difusão – e da sobrevivência – do pensamento aristotélico, ainda que Averróis não entendesse a língua em que se expressava o grego Aristóteles do século IV antes de Cristo.
Volto ao parágrafo inicial de As versões homéricas:
Um parcial e precioso documento das vicissitudes que [o texto] sofre permanece em suas traduções.
Mesmo com todas as dificuldades, ali afirma-se que, além das questões técnicas, a passagem é possível. O conto de Bogres demonstra isso. Em formato alegórico, ele contém mais de dois mil anos de uma história das traduções.
Referências:
Jorge Schwartz. Traduzir Borges. Cult – Revista Brasileira de Literatura. Ano III, nº 25. Lemos Editorial, agosto de 1999, pp. 40-50.
Jorge Luis Borges. As versões homéricas. In: Discussão. In: Obras Completas; Volume I. São Paulo: Globo, 1998.
Jorge Luis Borges. A procura de Averróis. In: O Aleph. In: Obras Completas; Volume I. São Paulo: Globo, 1998.
Em virtude da formação e por força do ofício, já li muita coisa relacionada a teoria de tradução. Lamento dizer que essa seria a única área em que Kant teria de dar o braço a torcer para os empirístas: na tradução, a teoria sempre corre atrás da prática. Nada substitui, na tradução, a mão na massa.
ResponderExcluirQuando li Geir Campos e Eugene Nida, leitura obrigatória para quem tem tradução como estudo superior, fiquei com aquela impressão de perdi meu tempo. É um grande conjunto de dicas. Mas como cada texto é um desafio singular, nem sempre as dicas podem ser aplicadas. O pobre do tradutor ou aprendiz de tradutor (alunos dos cursos de tradução) ficam equilibrando os pratos na tentativa de adaptar as dicas.
Por isso que Rosemary Arrojo é Rosemary Arrojo. Já que é para ser assim, vamos para a psicanálise, para a história, para a filosofia. Não é o ideal, mas para uma atividade que é água na peneira, com esse grau de empirísmo, até injeção na testa. É nóis. A instrumentalização que ela realiza na teoria de tradução a partir da psicanálise, certamente, faz com que muita psique fique apaziguada ao final de uma tarefa. Pelo menos garante uma noite de sono tranquila para o(a) pobre tradutor(a).
Adoro os textos desse meu "xará" e tenho a honra de ser muito amigo de um outro argentino que tem feito bonito pelas letras e pelas traduções. Este vira-lata aqui se atreve a bater à porta do nobre mundo das letras e sugerir que um dia arrumemos um jeito de trazer o Sérgio Molina, que realizou titânica tarefa tradutório do "Quixote", para trocar suas idéias conosco sobre tal...
ResponderExcluirÉ isso.
E Salve, Jorge! (com pronúncia castelhana...)
Porra Alessandro, coleciono revista há trinta anos. Sou mó lixeiro. Tenho umas coisas que ninguém tem. Primeiro número da Somtrês, primeiro da Pipoca Moderna. Da revista Bizz, quando era legal, todas. Pop, Caros Amigos, Cult Carta Capital, dossiê Dostoievski. Tenho uma puta vontade de resgatar, mas não sei como. Escanear pra nova geração, sei lá! Será que vale mostrar velharia?
ResponderExcluir