quarta-feira, 12 de novembro de 2014

70 Carte per una poesia2004 de Fulvio Leoncini


Por Marco Aurélio Cremasco

Anda. Às vezes tropeça em paralelepípedos. Quando existem. Ontem parou para ouvir pardais. Pardais? Na infância eram górgonas que habitavam o forro das casas. Hoje, vêm à forra: continuam cantando, enquanto ela gorjeia a solidão da idade. Arrasta-se nas sequelas do AVC. O que fazer? Aquário municipal. Mergulha. Brinca de não respirar. Arrepende-se. Bolhas, peixes multicoloridos e o movimento indescritível das mãos buscando o mar ensimesmado. Sente algo que toca a cabeça. – Toc, toc. Vê um cavalo-marinho (barrigudinho e de bico inchado) perguntando-se. – Haverá vida além do escafandro? Anda. Senta no banco da praça e abre o jornal. Fecha. As notícias se repetem, os personagens também, pois nem isso conseguiram mudar. Anda. Escarafuncha a memória, resgatando cada coisinha de dar dó. Retorna para casa. Banha-se. Alimenta-se. Copo de leite morno. Deita-se. Diverte-se enquanto conta carneirinhos (ela é daquele tempo). Dorme. Não sonha. Acorda. Não sabe como sair da cama com aquela carneirada toda à volta, pastando sonhos como se a morte não existisse e a vida... ora. Levanta. Ar seco. Água. A lágrima reflete o vaso de alface. Nada. Procura viver sorrindo, à toa, feito golfinho. Perambula pela casa. Sai à varanda. Às vezes gargalha, provocando revoada de maritacas. Uma pousa nos ombros. Conversam feito comadres. – As nuvens são flocos de algodão onde anjos descansam – afirma uma maritaca. Besteira! – ela retruca – Você não sabe que as nuvens são feitas de vapor de água? Flocos de algodão? Anjos preguiçosos? Que bobice! Eles as procuram para matar a sede. Entendeu? Os pássaros entenderam. Volta ao próprio corpo e oferece a face ao céu. A chuva, miúda, tece pintinhos que, quando piam, fazem desabrochar margaridas de basilicão. Engana-se. Não foi a chuva, porém orvalhos de ar-condicionado. Sacia as plantas e o manjericão agradece, exalando-se todo. – E aquela ali? Oferecida. Rosa, Rosa! Vê se fecha essas pétalas, menina! Ri de si mesma. Engasga-se de tanto rir e percebe-se só. Tão só. Tão. Vontade louca de se despregar da idade. Vontade de ser uma borboleta e, talvez, não mais: ser a lagarta dessa borboleta ou o casulo para protegê-la dos próprios pensamentos. Resiste. – Resisto! É preciso resistir. Comprarei uma saia, algo de minha época de mocinha. Tenho aposentadoria. Hoje é o dia de recebê-la. Faço-me bonita e o espelho não é atrevido o bastante para me desmentir. Arrasto-me. Ignoro o barulho da metrópole e o olhar férreo em semblantes aflitos. Evito o desleixo das calçadas e levito como se levada por maritacas. Chego ao Banco. Embrenho-me naquele amontoado de gente. Arrasto-me. Tomo a fila e dirijo-me à moça bonita, de lábios encarnados, bem cuidados, que me dá o salário, como esmola ou obrigação, apesar de toda a vida, de toda... Ando enquanto consigo, ainda que a velha sandália peça trégua e as pernas, cama. Ando. Os problemas necessitam, sempre, de companhia. Ouçam!, peço. Ouçam!, imploro. Quero que me ouçam. Não sou o problema, sou a companhia.

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