quinta-feira, 13 de novembro de 2014




“duelo a garrotazos”  (1819-1823), de Francisco de Goya

ZONA DE LEITURA

Por Zeh Gustavo
                          
                                                                                    à memória de José Fragoso da Fonseca, o Capilé, que queria seu 
                                 nome e sua história contada em livro.


Pelego, cobertor de pano curto, ajudante de capataz. Furingo. Mariquinhas. Cagoeta. Perto de assujeitado assim é que digo que Capilé é bem mais homem, ele, Capilé, desmunhecado, mulherzinha, viadão. Capilé é que merece nossos respeitos. Apronta as suas, mas é bola, posição goleiro, defensor do time da rua, nosso considerado. Pró-bairro, sempre. Já esse Amuleta... Duma figa, esse Amuleta! E se duvidar ainda há de me chegar embatonado de risinho frouxo nas fuças, como se nada de nadica houvesse. Não à toa o apelido: Amuleta. Diz-que por causa de suas sortes, em uma ou outra jogatina pelo mundo, nas sinucas, dominós, carteados. De penduricalho, carrega cordão no caído do peito, camisa entreaberta, pedregulho brilhoso a ostentar a fama. Amuleta, o que empina a própria alcunha a saltear a partir do pescoço, para baixo. Troço de quem coxeia da honradez de homem digno, isso sim. Um desarmoniado, vaso ruim, zé-furreco. Bica enguiçada da qual só jorra água imunda.

Amuleta, que se propaga como cria cá da rua do Propósito. Logo ele, tão sem os seus, nunca postos às claras, conforme os costumes dos arredores, de malta honesta. Cascateiro! Veio é dos cafundós! Se marcou visita eu não manquitolo do encontramento. Te espero no Talma e logo mais é agora. Disputo a rinha, se galo vier e houver, vou na disposição. Cisco em meu próprio terreiro. Sem nó. Quer acertar os ponteiros? Meu relógio não perdeu o pulso, ginga belamente, no sentido que a hora pede. Amuleta chegou atrasado. E nem é daqui da região, nem que quisesse, conquanto mentisse. Tranquilidade, vamos resolver a pendenga, com ou sem bordoada. De boa, na moral, vem na fé. Sujeito homem, ante o medo, nem de prece carece, vai no valenteio.

Da história desse cabruncho, pouco se sabe, o que ele dá se aceita. Povo faz de desconfiado mas se fia té demais, nuns tais. Eu que vejo sombra, tá bem, vamolá. Só que, em matéria de corneta, não presto para desafino. Assunto, assopro e, no que assimilo, aí que abro a gogó pra grita. Confirmado o palpite certeiro no bafúncio, hora de apontar meu desacordo. Pondero, com tino, miro a arma, atiro. Assumo com sanha o besuntado, parto pra dentro, detalho. Denuncio, não condeno. Pronuncio, com fala ausente de meias frases: deste lambe-botas chamado Amuleta, o que posso referir, na seguridade mais segura, é que ele tá é à venda! E quem pender pra ele também vai ter que rodar. Ou roda a categoria toda. E tenho dito. Pé no rabo desse zumbaieiro, marujada! Quebra a guia dele.

Pé no rabo. “Paciência, Comuna!”, os cais me pedem. Paciência. Comuna. Eu, que nunca cheirei pó de livro do tal de Cal! É Cal que falam, Cal Marques. Agora... Comuna por que, companheirada?! “Paciência, Comuna! Esse Comuna tá é doido...” E a diretoria goza. Goza, goza aí. Depois se vê, bando de trouxa! Na assembleia o couro estica, batera se forma, turba espoca. No guizo do ganzá se serve um dito cujo salafrário, de bandeja pra refeição dos que não toleram um bunda-suja. Amuleta cai, Comuna fica. Comuna da Harmonia, que ainda calha com meus talentos à viola. Valha um dó, menor ou maior. Eu toco. Comuna da Harmonia. Assim, tanto melhor. Tamo junto e pranto curto de poeta é sinto-muito.

A vida no Porto não reporta só a luta e a lida não. Tem muita lira, roda, glosa. Quem bota sacolão no costeado também sacode a mão no tamborim, no surdo, num cavaco. Vizinhança, essa, é de brinca e amizade. Tá pra festa e pra festim. O laço dura até nos derradeiros de um conflito. Morre-se abraçado. No dia a dia, há boa troca, farta ajuda. Quem não escreve, pede pro que para isso deu e serve. Quem não lê, enxerga. Só não tem espaço é pra safado.

O Talma é uma sociedade dramática, como chamam. Um clube de teatro, aqui da cena da Harmonia. Pra onde vem gente de toda a Saúde, das margeanças desse onde em que atracam os navios tudo, e povo da Senador Pompeu, Morro do Pinto, Camerino, Leandro Martins, São Cristóvão... Frequentadores da Central, gente-bem, artistalhada bacana, de fita. Mó riqueza, nos dons. Todo esse movimento faz crer que a cidade é nossa. No Talma rolam também uns dados, uns joguinhos... De azar, mas também de sorte. Fortuna, é jurado e juramentado que não se faz, imagina! Não é lugar para tanta zanga, pelo contrário. Povaréu do ao-redor da praça quer é fandango, pagode, bailão, quermesse. Aglomeramento. E bonde na porta de casa, ora se não! Fino trato do poderio? Só um agrado. Que vai até certo ponto, claro. Sempre digo, da minha falastrice de Comuna: se a gente não se organiza, o que nos acontece? Nos passam pra trás, de solapada, se esquecem.

Tinha que ver isso aqui antes do sindicato! Estiva, batente facilitado nunca que foi nem será. Lombo pra transporte de carga pesada era o da escravaria. A chegada do salário não mudou muito, de imediato, a nossa condição não. Nego ficou foi perdido, barata-voa, perna solta, barco sem porto. Vagabundeou-se, à toda. Hoje, o sindicato controla. Dá trabalho. Todo mundo trabalha. Até cabra franzino se emprega, no esquema dos rodízios. Tem só que se aguentar no próprio dorso, contra o vento. Além de não ser levado pela baba larga da saliva dos contratados, que solicitam, na falsa humildade: “Fura lá essa greve, marujo...”

Pois então, aí que quero chegar. Amuleta tá mancando direto sua lábia lá com os escriturados. E com livre acesso de convencimento junto aos cais. A última greve danou tudo. Prejudicou, entregou pra eles. A coisa anda esquisita. Amuleta uniu-se de conluio para com a chefatura. Tese que provo e reprovo. Trapiche continua sindicalizando? Sim, mas tá estranho, tudo muito estranho. Descobri gente do Amuleta, pessoas de proximidades bem próximas dele, mesmo, de pose nas escrivaturas dos armazéns, com posto de mandão, empatronado, submetido. De entrão. Delfino, Bodega, Felício e outros diretores pipocam, ensurdam, esquivam o memoriado: “Não lembro desses não, Comuna...” “Vai ver sempre estiveram no mesmo lugar.” “Você tá é de cisma, melhor deixar quieto...” Mas eu me lembro bem, guardo rosto de sacana como ninguém. Recorto uma cara dura com todos os seus contornos, colo na pele da memória. Manjo bem o tipo, que esconde os dentes quando sorri, que olha murcho, faz de bobo, pisa o pé sem plantar rastro, corcoveia e manobra, mantendo na guarda do silêncio suas intenções de dentro. Estas, só se revelam quando o sol já se pôs.

Agora, lembrança tem coisa de apagar o que não é de conforto lembrar. Já lembrança de Comuna da Harmonia não se aflige não. Ela lembra. Amuleta, elogiador número um de governo, parceirinho de manda-chuva, chupa-bala de ricão, lacaio de carcará, entregador de pé-lascado: tô no seu encalço, à sua espera. Daqui não me pelo. Nesse riscado de chão do Talma é que vamos nos resolver. Ou não. Percebo o clima de armação. Mas quem foge da raia é peixe-vilão. Pode vir, malandreco.

Não sou malandro, porém me ajeito, de sapato ou de tamanco. Descendo de Pata Preta, Manduca, Russo, Amendoim. Capoeiristas, arrumadores, revira-barracas, não-vacinados, desobedecidos, avançados. Republicanos. Ou anarquistas? Tanto faz, se ainda por cima me chamam Comuna. Sangue que se derrama, nasce mais pra circular. Só não se pode perder o viço, o samba, a gana, o frevo, o candomblé. Com batuque e troça se constrói a casa, também. Foi das reuniões de divertimento e reza que se operou muita incomodação dos maiorá, dos linho-puro, chibateiro pálido, fracote endinheirado. Isso tudo para nós poder subir um tiquinho, fazer uma graça.

Vai entardecer. Hoje tinha furdunço da turma do bloco Coração das Meninas. Nossa coqueluche. Lindeza. Que rir, com Capilé – há que se eleger de rainha, a bandida! Cocota Chique, senhora sua mãe, é cozinheira de mão-cheia. Vai ter torneio de prato da tiarada, ah se não vai! Mas Cocota Chique é imbatível, ninguém manda de volta para a panela seu cozido, sua dobradinha, sua feijoada, sua bobó. Saúde apita é na Praça da Harmonia. Minha localidade, porto, morada. Orgulho temos, porém sem vaidades, tampouco hipocrisia. “Nós temos flores, cheiros e cores/ Pra passear nós pegamos a Ponte dos Amores...”, diz um verso brejeiro, antigo, composto por uma de nossas meninas do bloco. Falam em modernidade. Mas tamos um tantão à frente deles. Semente podre como Amuleta não vinga, não. Sufoca, por debaixo da terra em que pretendeu germinar seu fuzuê de intriga, sua viga de maldade, desdita sem fim.

Amuleta chegou. Sinto seus passos, a batida do seu caminhar. Essa cadência de quem atropela, bem devagar e ritmado. Como se não fizesse doer. Vou descer, mas não vou cair. Comuna que é comuna não se desguarnece jamais, do que lhe é próprio, de si. Ficam esses anotados como estão, para a história continuar a ser contada, no depois. Harmonia não se compra, nem na praça nem na rua. No mais, deixa a gira girar.

* Conto publicado originalmente na coletânea “Porto do Rio do início ao fim” (Rovelle, 2012).


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