sexta-feira, 14 de novembro de 2014



Por Ademir Demarchi


Absorções, de Ninil Gonçalves (2.a ed., São Paulo, Big Time Editora, 2014)


Quebrados pela disposição em versos curtos, no que transparece ser um artifício de diminuir essa marca, os poemas de Ninil Gonçalves são compostos por frases longas, bem definidas pela pontuação e uso de maiúsculas, num procedimento que aproxima a escrita mais da prosa e a distancia de uma poesia que fosse mais acentuadamente preocupada com a linguagem. 

Ainda que essa questão não predomine, os poemas denotam escolha pontual das palavras, com remarcada preferência por adjetivos, como bem se constata no verso “Corpo desarmado, desalmado, desbotado.”, do poema “Descartável?” que aponta para outra característica forte desse livro: a metafísica: 

“O que se condicionou chamar/ apenas de corpo,/ sem um nome ou apelido/ que lhe instaure no ser/ a unicidade de sua existência,/ fogo por ruas iguais/ de nomes sempre iguais.” – no mesmo poema. 

Isso quando não é o próprio corpo, atravessado pelo olhar desse eu lírico que, quando sai de si, derrama-se sobre a paisagem ressecada, para fora de si, e dele não se abstrai, intensificando ainda mais a metafísica, como no poema “Vazio”, que, buscando no outro um sentido, encontra nas crianças de Gaza (“meros invólucros de almas”) a mesma falta de sentido existencial que é devolvida a esse que olha, “Saco cheio de nada”. 

Essa experiência de escrita explicita seu débito de sujeição à “máquina Drummondiana” (sic, quanto à maiúscula) que faz mover o sentimento metafísico transbordante dos poemas e, reafirmando-se mineiro de Cristina, o poeta começa e acaba o livro com textos inspirados nessa cidade natal, cristiniano, como se tivesse seu corpo espremido – ou crucificado - entre uma e outra extremidade tentando encontrar um sentido que, marcado, parece vir desse lugar incerto, ainda que exista no mapa, tentando se recolocar agora em outro lugar incerto da poesia e do livro. 


Um poema de Absorções, de Ninil Gonçalves:


VAZIO

                                             Às crianças de Gaza


A lágrima é usada apenas para lavar os olhos
do sangue e da fuligem acumulados em excesso
sobre os delicados e impacientes cílios.
A dor ultrapassou o sentido desse líquido.
O pequeno e esvoaçante corpo,
acostumado em ligeiras  fugas
 sobre os contínuos  escombros
nas improvisadas brincadeiras
sucumbe ao peso esmagador
do vazio infindável e nebuloso
instaurado sob a necessidade incessante
de se colocar perante o que se chama de inverso,
 numa ilusória preeminência.
Subtraindo a excelência da descoberta
da grandiosidade que brota no outro.
O amontoado de lixo político avança,
sobrepondo o real valor humano.
Desfigurando e arrancando das faces
 a descompromissada gratuidade do riso
e a sutileza da mudança brotando na íris.
Cobram um valor demasiado alto
de existências exauridas de si,
constituídas na mecanicidade de dogmas
e valores encarceradores.
O rápido esvair de vida do pequeno corpo
enroscado sob um amontoado de aço e concreto
não é empecilho ao desenfreado avanço
da estrondosa gargalhada do poder.
Meros pontos de calor esfriando
sob o sol escaldante.
Meros invólucros de almas,

esvaziando-se de si.

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