terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Alessandro Atanes, para a coluna Porto Literário do PortoGente
 
Semana passada, revisitei o poema Caranguejos aplaudem Nagasaki, de Marcelo Ariel, sobre a tragédia social de Vila Socó (leia aqui Vila Socó revisitada), que dizimou este bairro de Cubatão em 24 de fevereiro de 1984. Ele está no livro Tratado dos anjos afogados (2008). A ideia foi dizer que a arte, no caso a obra de Ariel, permite que se pense sobre as coisas além da experiência, “como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo”, como disse a ensaísta argentina Beatriz Sarlo. Hoje “trevisito” o livro com a ideia de escrever sobre outro componente histórico do tema de Caranguejos aplaudem Nagasaki.

I
Vila Socó: Libertada é o nome de toda a primeira seção do Tratado. São 26 poemas, começando por O Espantalho, o dos caranguejos e ainda outros como Praça Independência-Santos, Jardim Costa e Silva-Cubatão, Carandiru Geral e Em Cubatão, que formam uma geografia literária cujo epicentro é Vila Socó; ou ainda Sonho que sou João Antônio sonhando que é Fernando Pessoa, A cosmicidade de tudo e Rimbaud Rock, que fazem de Vila Socó um centro de emissão de pensamento metafísico. Exemplo de título que reúne as duas órbitas é o do poema Com Miles Davis na Serra do Mar.

II
Se o Tratado fosse uma ópera ou um concerto, Vila Socó: Libertada seria sua abertura, demarcando o espaço da ação. Metafísica no caso das partes III, Oceano Congelado; IV, Esse invisível fantasma; e V, Autobiografia total e outros poemas; e territorial em II, Scherzo-Rajada; e VI, Me enterrem com a minha AR-15 (Scherzo-Rajada 2), que encerra o poemário.

As duas categorias acima – poemas geográficos e poemas metafísicos – estão formuladas em linhas gerais a partir dos títulos, como se víssemos uma floresta à meia distância. Não é o que ocorre na leitura corrida dos poemas. De perto toda a polifonia poética de Ariel surge desde O Espantalho, dedicado para crianças, e se estende por todo o livro, o que fica bem caracterizada no poema Em Cubatão:  

Em Cubatão

num céu que não nos protege
contemplando a procissão dos falsos replicantes
sendo sugada pela interzona industrial
cercada de favelas
pétalas dessa flor do mal
ouvindo o sino de fogo de Rimabud
(que aqui seria só mais um desempregado carregando o
pólen da morte
flor enorme e cósmica
desse jardim das trevas
onde os nomes das cidades ou dos Poetas
serão nada)
Um sol negro irradia esse silêncio atômico
Voltando ao poema
ponto final do ser,
a besta pára
na Praça Euclides Figueiredo, desço
entro na Rua Camões e sigo pela
Machado de Assis.
Amém.

Aqui, a polifonia no poema: o primeiro verso vem do filme O céu que nos protege (1990), de Bernardo Bertolucci, os replicantes do segundo verso são os andróides de outro filme, Blade Runner (1982), de Ridley Scott. A interzona industrial cercada de favelas dos terceiro e quarto versos é a realidade geográfica. Os três versos seguintes remetem a Rimbaud (seria um desempregado em Cubatão), seguidos por uma série de imagens. No final, o verso-expressão “ponto final do ser” traz o poema para a perspectiva metafísica do narrador-passageiro de ônibus que transita entre as ruas – e as literaturas de – Camões e Machado de Assis.

Referência:
Marcelo Ariel. Tratado dos anjos afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.