terça-feira, 14 de abril de 2015

Imagem de Valerio Oliveira

Por Nelson de Oliveira


Cinco anos atrás emprestei meu exemplar de Solaris a um oficinando e ambos desapareceram na curva da rodovida. Não me abalei. Semana passada fui a uma livraria pra comprar outro exemplar do romance mais celebrado de Stanislaw Lem, duas vezes adaptado para o cinema. O livreiro consultou o sistema, correu até a estante e trouxe o livro. Foi somente na fila do caixa que eu percebi a farsa.

Na capa, ao lado do título do romance, em vez de Stanislaw Lem estava impresso Valerio Oliveira. Na folha de rosto e na página de créditos a mesma coisa: nem sinal do nome do autor polonês. Valerio Oliveira era o único autor de Solaris. Saí da fila antes de pagar e fui ao café da livraria. Li uns poucos trechos do livro, que logo indicaram não se tratar de uma sátira ou uma paródia homônima. Tratava-se de uma ótima tradução do mesmo romance de 1961.

Andei até a estante de onde o livreiro havia tirado o exemplar e encontrei na mesma prateleira outra edição brasuca de Solaris, dessa vez assinada por seu verdadeiro autor. Foi por esse motivo que minha mulher me viu chegar em casa com duas edições, em vez de uma. Não há dúvida de que a tradução de Valerio Oliveira é a melhor em língua portuguesa. Mas isso justificaria o plágio?

Ontem à tarde, ao encontrar num sebo online um Ficções e um Cem anos de solidão também assinados por Valerio Oliveira, percebi que a questão é outra. Comprei os dois livros. Mas não preciso esperar a encomenda chegar pra saber que não se trata de plágio. É algo bem mais profundo e sutil. Algo para o qual ainda não foi inventado um bom nome.

Pierre Menard, autor do Quixote, um dos contos mais celebrados de Borges, está na coletânea Ficções, de 1944. Nessa paródia de artigo literário, o narrador-ensaísta fala da obra excêntrica de um cultuado escritor simbolista recém-falecido. Após elencar os textos que formam a face visível da produção de Pierre Menard, o comentarista passa à face secreta. A composição de um romance intitulado Dom Quixote de la Mancha foi o projeto central, porém inacabado, dessa obra subterrânea.

O simbolista não pretendia compor em francês uma sátira ou uma paródia do romance de Cervantes, ele pretendia compor o Quixote. O mesmo Quixote de Cervantes, em espanhol, porém milagrosamente outro. Menard também não pretendia simplesmente copiar o romance original. Isso seria fácil demais. “Sua admirável ambição era produzir umas páginas que coincidissem palavra por palavra e linha por linha com as de Miguel de Cervantes”.

Estava em ação a poética do anacronismo: separados por três complicados séculos de História, o mesmo texto jamais seria o mesmo texto. Cotejando as páginas de Menard com as de Cervantes, o narrador-ensaísta conclui: “O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico. (Mais ambíguo, dirão seus detratores; mas a ambigüidade é uma riqueza.)”

Estou convencido de que Valerio Oliveira começou a praticar a poética do anacronismo, inaugurada por Pierre Menard. Entretanto, menos radical que o simbolista francês, o pós-modernista brasuca não ambiciona produzir umas páginas que coincidam palavra por palavra e linha por linha com as dos autores escolhidos. Ao menos não com as páginas dos autores estrangeiros. Também não posso garantir que Valerio Oliveira esteja escrevendo seus livros sem consultar os originais. Mas isso não enfraquece a questão central desse projeto criativo: em que momento o plágio se transforma em arte?

Minha conjectura foi confirmada hoje de manhã pelo poema-manifesto Obras completas de Valerio Oliveira, publicado na web. São cinco tercetos e um dístico final. Os tercetos enumeram vinte e nove obras-primas da literatura, vinte e três em prosa e o restante em verso. O dístico final encerra a enumeração com uma confissão: “Qualquer livro que eu ame é meu / sou eu”. Continuei pesquisando e encontrei em sebos e livrarias outros clássicos assinados pelo autor, incluindo livros brasileiros, todos citados no poema.

A poética do anacronismo, de Menard-Oliveira, põe e xeque a tradicional noção de autoria e o conceito de propriedade intelectual. As duas versões de Solaris provam isso. Não há dúvida de que o texto de Lem e o de Oliveira são semelhantes na realização, mas o segundo é quase infinitamente mais rico.

O romance de Lem, fruto de uma sociedade despótica europeia do final do século 20, é uma narrativa contaminada pelo pessimismo da Guerra Fria e pela indiferença do vasto cosmo, alheio às crenças e aos anseios humanos. O romance de Oliveira, fruto de uma sociedade democrática sul-americana do início do século 21, é uma homenagem aos heróis da contracultura, que iniciaram a renovação dos valores e da consciência mundial.

Anedota exemplar: em 1999, um importante jornal de São Paulo decidiu testar o filtro de seis grandes editoras. A reportagem fez seis cópias do romance Casa velha, de Machado de Assis. Cópias encadernadas com espiral, que foram enviadas pelo correio às editoras. É claro que o título e a assinatura do romance foram trocados. É claro que esse original foi rejeitado.

Diferentemente do que a reportagem esperava, a experiência não provou que as grandes editoras são míopes para os escritores geniais. Mas forneceu mais uma evidência de que o mesmo texto jamais será o mesmo texto se a assinatura mudar. Aí está a lei fundamental da poética do anacronismo: qualquer texto fora do contexto é outro texto.

A diferença entre o plágio e a poética do anacronismo está na intenção do autor. Enquanto o plagiário deseja tomar o lugar do verdadeiro autor, o poeta do anacronismo deseja ser um duplo do verdadeiro autor. Para o plagiário é fundamental que o verdadeiro autor desapareça, para que possa assumir seu lugar. Para o poeta do anacronismo é fundamental que o verdadeiro autor permaneça, para que as duas obras iguais-desiguais possam ser comparadas.

Pierre Menard não planejava ocupar o lugar de Cervantes, mas incorporar e superar Cervantes. Do mesmo modo, Valerio Oliveira não planeja ocupar o lugar de Stanislaw Lem, Borges, García Márquez etc., mas incorporar e superar os autores que ama. A poética do anacronismo flagra a diferença no coração da semelhança. Sua estratégia hermenêutica revela mais sobre o leitor do que sobre os autores e as obras.

Os poetas do anacronismo estimulam a perspicácia do leitor sofisticado, ao promover uma experiência estética inédita: um diálogo complexo-irônico-problemático entre obras e autores de espaços geográficos e períodos históricos distintos. O gênero literário mais próximo da poética do anacronismo é a paródia moderna, definida por Linda Hutcheon como “uma forma de imitação caraterizada por uma inversão irônica, ou seja, um tipo de repetição com distância crítica” (Uma teoria da paródia).


Nelson de Oliveira ainda não nasceu. Para não assustar os amigos, prefere mentir que nasceu no dia 16 de agosto de 1966, em Mahagonny, maior cidade da Ilha do Dia Anterior. É ensaísta e professor livre-docente de literatura xamânica na Universidade de Macondo (Unimac). Pesquisa a imortalidade por meio do upload da consciência. Só acredita em biografias imaginárias. E na beleza moral do céu estrelado dentro de nós.

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