quinta-feira, 16 de abril de 2015

Por Alessandro Atanes

Podemos estar errados, o interlocutor pode
estar tão errado quanto nós, mas, de qualquer
forma, o fato de supor que o interlocutor tem
razão é um bom prelúdio para o diálogo.
Jorge Luis Borges

Em suas entrevistas para a Rádio Municipal de Buenos Aires nos anos 80, Jorge Luis Borges creditava o valor do diálogo à presunção de que o outro possa ter razão. Tempos de gritaria como os de hoje só mostram o quanto estamos afastados desta prática tão antiga da humanidade.

Essa dificuldade para o diálogo foi assumida no título do livro do jornalista, historiador e professor universitário Marcus Vinicius Batista “Quando os mudos conversam” (Realejo Livros), lançado em fevereiro. Quem são esses mudos do título? O próprio livro responde nos títulos das três seções em que estão organizadas as crônicas: EU, TU e ELES. Se há NÓS, o pronome que reúne a todos, ele surge mais como uma esperança do que uma realidade. Essa busca por NÓS – que reconhece a importância do diálogo – é que conduz a obra.

A primeira seção, EU, reúne experiências pessoais do autor: um velório, uma viagem de trem, testemunhos de cenas cotidianas, e parece ter um duplo sentido: de um lado, é o espaço da crônica canônica. Sem comparar as qualidades deste ou daquele texto de Marcus Vinícius Batista com os mestres brasileiros da crônica do século passado, ele se põe aqui como herdeiro dessa tradição literária brasileira marcada pela atuação de escritores no Jornalismo, cuja principal referência talvez seja a Flor de maio, de Rubem Braga, a crônica das crônicas.

Mas o que teria ainda a dizer esse gênero típico do século XX, ligado à experiência individual do escritor frente ao mundo, quando, na pós-modernidade do século XXI, tudo é experiência individual, quando qualquer um pode dizer o que quiser e todos os discursos se equivalem, que tudo é relativo?

Aí surge o outro aspecto do duplo sentido, ao nomear de “EU” essa primeira parte, o autor também limita este mesmo “EU”. Intuitiva ou reflexiva – tal divisão não mais importa –, essa limitação do “EU” libera o autor para sair de si mesmo e, a partir da segunda parte, TU, buscar refletir sobre a experiênca do outro mais do que expressar a experiência individual. Ainda estamos próximos à crônica canônica, mas já em outro registro, a serviço da reflexão sobre a sociedade.

Mas esse TU não é apenas a pessoa com quem se fala na língua portuguesa, é uma marca local da fala santista (sem esquecer que de outros lugares também, pois não devemos alimentar o bairrismo): aqui fala-se “tu vai”, “tu viu”. Então, além de ser um direcionamento ao outro, a 2ª pessoa do singular, esse “TU” da segunda seção é também um indício geográfico, uma pista do território que passa a ser tratado nas crônicas, como explica o próprio autor na apresentação do livro: “A segunda parte, intitulada Tu, envolve personagens da minha cidade e de outras regiões. Personagens, leiam-se, gente e lugares, todos eles com alguma afetividade, seja por memória, seja por atualidade”.

E o afeto pelas coisas da cidade não significa exatamente um olhar doce, pelo contrário. Crônica após crônica, Marcus Vinicius Batista vai apontando mazelas próprias da cidade e as articula com as mazelas próprias dos tempos atuais como a especulação imobiliária e o trânsito infernal. A cidade engarrafada no tráfego é tema da crônica O filho do trânsito, sobre um amigo motorista: “Os Homo trafegus não dirigem apenas táxis. Seria uma injustiça generalizar o olhar particular. Estes espécimes conduzem ônibus em jornadas semiescravas de trabalho. Pilotam motocicletas castigadas com entregas multiplicadas pelo tempo curto. Arrotam status quando passeiam com seus carrões de novos ricos nas portas das escolas. Um ecossistema rico em diversidade e perversidade, pronto para estudos científicos”.

Em A rua que divide o tempo, as transformações promovidas pelo avanço imobiliário sobre o território da cidade são vistas a partir da perspectiva de uma pequena rua da Ponta da Praia, a Francisco Hayden, que separa dois terrenos vinculados a clubes históricos da cidade: de um lado, o terreno vazio onde um dia esteve o Clube de Regatas Santista, demolido recentemente; do outro, o Clube Internacional de Regatas, com muros de tijolos vermelhos, ainda em pé.
“… O grupo que abriu a porteira para a boiada de concreto e ferro tem na rua Francisco Heyden um cartão postal macabro que escancara o estrago, fruto da ansiedade por progresso.
Do outro lado, o gigante vermelho deve se preparar para a própria pequenez. Para a luz que será trocada por uma parede de dezenas de andares. Para entender que o morador de hoje é um sujeito com outras formas de lazer em mente. Sujeito que pode desejar o velho clube Internacional, mas que flerta com outros espaços fechados, com vitrines, praças de alimentação e outros atrativos à base de cifrões.”
Em Os escombros da Pompéia o cronista trata da demolição sintomática dos prédios das faculdades de Comunicação e de Filosofia, Ciências e Letras na Rua Euclides da Cunha, cujo território muda de função de local de produção de conhecimento para moradia de alta renda:
“Os prédios morreram pelas mãos do crescimento imobiliário paranoico. Tornaram-se peças descartáveis. No lugar, serão três torres, de 42 andares. Os edifícios, um dia imponentes, eram apenas formigas diante dos elefantes que se aproximam. O passado enterrado deu vez à ilusão dos que se julgam mais próximos do céu.”
Ex-aluno e também professor da Universidade Católica de Santos, o autor não esconde a tristeza pessoal, mas, além dela, busca traçar a perda coletiva: “Parte da história da Pompéia são escombros, prestes a encher as caçambas de caminhões. As experiências são entulhos de um passado que merecia melhor valor. A nova história, por enquanto, é reescrita pelas máquinas pesadas, nascidas para desconstruir, borrachas que eliminam símbolos da cultura local, gravados nas paredes que abrigaram milhares de estudantes, visitantes e funcionários”.

“Escombros” e “entulhos do passado” apontam para uma cidade de ruínas geridas pela especulação imobiliária, cuja sanha transformadora atinge até mesmo um pequeno farol a dezenas de metros da praia na altura do Canal 6, já sem valor de navegação, mas ponto de mergulho de centenas de crianças e jovens ao longo das últimas décadas. E acabou derrubado mesmo sem que nada possa ser construído em seu lugar: “O farol tem destino traçado, o da insignificância coletiva, o da ausência de vontade política de quem administra dinheiro público”, escreveu antes da demolição programada.
Sem comparar os talentos do autor e de um clássico como Rubem Braga, tomo A morte do farol como a Flor de maio do livro. Nela, a voz individual e a voz coletiva (EU, TU e ELES) imbricam-se em torno de uma pequena construção, quase insignificante, metáfora para as ruínas de toda a cidade.

Reflexo do impacto das transformações urbanas na vida de todos, o tema da especulação avança da seção TU, voltada para Santos, e se instala também na seção ELES, em que descreve uma visita a uma destas torres-godzila que vêm sendo construídas pela cidade:
“O edifício era uma fortaleza. Para alcançar o elevador, três portões e a identificação junto a dois funcionários. Imaginei que, em instantes, pediriam carteira de identidade, CPF e comprovante de residência. O nome das torres misturava idiomas, mezzo francês, mezzo inglês. […] O apartamento segue a tendência: possui limite de capacidade humana, como os elevadores. De tão pequeno, o apartamento lota com meia dúzia de testemunhas. Mas o dono garante que a piscina e a pista de skate foram atrações que pesaram na compra. A piscina permanece como sonho de consumo. Por enquanto, só água quente de chuveiro. E o filho, este não é fã de esportes radicais.”
O tom e o texto
Esses textos fazem parte de um projeto (ou de uma esperança) de valorização da escrita jornalística pela qual o exercício da crônica exerce uma resistência contra a pausterização do texto. Encontramos por todo o livro sentenças – como os trechos acima que tratam da pequena rua, das torres em construção ou dos escombros – que provavelmente não leríamos nas páginas de notícias, conformadas em textos concisos, telegráficos e escritos com o intuito de hierarquizar os assuntos de maneira que qualquer parágrafo possa ser descartado para que o texto caiba no espaço que restou na página após a aprovação do anúncio.

Essa aposta do autor no jornalismo com texto de qualidade chega a seus melhores momentos quando é estimulada pela revolta do autor contra a naturalidade com que são tomadas as ações mais abjetas contra as pessoas, sintomas de uma sociedade “doente”, com “instituições apodrecidas”. O bom texto a serviço da revolta e da indignação, como em A Rosa sem nome, da seção ELES, sobre uma adolescente presa há alguns anos pelo Poder Judiciário do Pará em uma cela junto com homens:

“A garota, fragilizada fisicamente, deteriorada na própria autoestima, caiu na teia do processo inquisitório. Julgamento foi peça ficcional. A punição foi rápída e, certamente, com danos definitivos para a ré-vítima.
No entanto, a menina de corpo franzino, marginal e miserável não foi ‘curada’ de seus males na fogueira acesa antes do amanhecer. Seu destino foi uma cela de prisão, dividida com 20 homens por 24 dias. As labaredas não eram extintas assim que o corpo se queimava. As chamas se realimentavam a cada refeição, ressuscitavam a cada violência contra um corpo feminino que insistia em permanecer incomodando o sistema medieval.
[…]
Como no universo totalitário, as autoridades jamais têm ou podem assumir responsabilidades. A culpa é da adolescente de 15 anos, pecadora por ser menor, transgressora por ter retardamento mental, segundo o ex-delegado-geral do Pará. A responsabilidade dela se eleva se considerarmos que a adolescente provocava sexualmente os presos, conforme a constatação da corregedora da Polícia Civil do Pará, Liane Paulino, afastada da investigação por essa ‘conclusão civilizada’.”

Ao final do texto, uma nota em itálico informa sobre o destino das investigações durante o intervalo entre a crônica original e sua publicação em livro, o que faz indagar se não seria mais proveitoso que houvesse a data original de cada crônica ao fim de cada uma, não apenas como utilidade, porém como mais um estímulo (a lembrança de uma data) para o leitor entrar na conversa.
Marcus Vinicius Batista não está sozinho nessa empreitada de valorização do texto jornalístico, como mostram sites como o Jornalirismo e a própria multiplicação de cronistas na grande imprensa, sites e blogs. A grande questão é: esses espaços ficarão como ilhas em meio a notícias sem graça e sem vigor como os tópicos de uma apresentação de power point ou terão força para levar o bom texto de volta para o noticiário?
Minha desilução com a atividade jornalística me faz pender para o primeiro cenário; minha leitura de “Quando os mudos conversam” me faz ter um fundinho de esperança no segundo.

O autor - Marcus Vinicius Batista é jornalista há 21 anos. Trabalhou em afiliadas das redes Record, Manchete e Globo, além do jornal Folha de S.Paulo. Hoje, é colunista do jornal Boqnews, escreve para revistas e para sites como Jornalirismo e CineZen Cultural. Ele também dá aulas em cursos de Comunicação há 12 anos, na Universidade Santa Cecília (Unisanta) e Universidade Católica de Santos (Unisantos). Formou-se também em História e é Mestre em Educação.

Referência
Marcus Vinicius Batista. Quando os mudos conversam. Santos: Realejo, 2015.
Jorge Luis Borges. Sobre a filosofia e outros diálogos. Organização e tradução: John O’Kuinghttons. São Paulo: Hedra, 2009.

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