quinta-feira, 2 de abril de 2015



Por Manoel Herzog

Abri olhos às sete, desgostando de acordar tarde, o compromisso era pra sete e meia, não vai dar pra tomar café. Melhor, tomasse café o calor da bebida estimularia o intestino e atrasaria mais, ou me faria ir ao compromisso em situação de incômodo.

Meu psiquiatra aguarda pra consulta trimestral. Não posso perder, depois pra arrumar outra brecha na agenda dele são mais três meses. Seis meses sem ele não consigo. Parti pra consulta sem café nem banheiro. Na ansiedade.

Hoje vou mostrar minhas coxas pro psiquiatra.

Quando deparamos, quando à frente do outro, sei que olhamos inadvertidamente pra regiões pubianas. Não é?

Talvez não. Eu que olho. Não consigo desviar o olhar. E nem há desejo nisto, de olhar, olho por nada. Mania. Devia ter tomado café. Talvez faça falta pra meu filho essa alimentação.

Não sei pra quando espero meu filho. Talvez pra vida toda, desde sempre. Talvez nasça hoje, talvez aborte. Devia ter tomado café. Com ou sem café sinto contrações. A secretária avisa que o psiquiatra vai atrasar. E que há outro paciente para as oito. Enganou-se na agenda, marcou dois. Talvez queira atendê-lo, em detrimento de mim. Antecipo ciúmes. Ele chega.

Desculpe. Importa-se se atender o senhor Malvino primeiro? Pode voltar às nove e meia? Conversamos mais tranquilamente, aí seremos só nós dois, sem mais pacientes hoje.

Está bem. Sigo pra rua, pensando pra onde ir até. Me preparei tanto, minha coxas. Talvez ele nem ligasse, profissional. Contrações. Meu filho. Talvez nasça.

Volto pra casa. Ela dorme, nua. Não desejo. Contrações. Vou ao banheiro. Nada. Os remédios me impedem de ter filho. Esperança de que meu psiquiatra me liberte. Olhe pras minhas coxas. Dê alta.

Ela balbucia. Nunca pensei morar com mulher. Queria ter filhos. Soltá-los no vácuo mundo. Esse filho agora.

Devia ter parado no café perto do consultório. Sempre paro lá. Desejo a neta do dono. O dono, um velhinho que gosta de pescar. Meu psiquiatra achava bom se eu pescasse também. O velhinho achava bom se sua neta e eu. Quero ter filho.

O velhinho do café voltou. Andava sumido. Gostou de me ver. Me viu melhor.

Como vai o senhor, tava de férias, pescou muito?

Nada, me afastei uns dias pra operar as vistas. Catarata. Vai o quê hoje?

Café com leite bem quentinho, e pão com manteiga.

A neta se antecipa:

A máquina de café não esquentou, vai levar uns vinte minutos.

Então deixa, meu bem.

Ela cora. Fecha o semblante.

Tome outra coisa.

Não meu querido, de manhã só vai café mesmo. Mas foi bom ver o senhor de novo, que se recupere, fique com Deus.

Obrigado.

Há um quê de frustração na resposta do velhinho, gosta de vender uma bala que seja. Miserável. Neta encalhada. Mau comerciante, nem uma mercadoria daquela consegue circular. A neta nada manifesta, sempre tão refratária a mim. Se soubesse de meu psiquiatra e eu então. Vou até outro canto. Contrações. O remédio. Prisão de ventre. Liberta. Contrai. Solta. Retém. Pare. Vai.

Pare, vai, tem que parir. Ensaio a ida ao vaso, ela dorme, eu travo, não vai, nove horas, volto à consulta. Constipação. Prenhez. Enchimento.

Em contrações me vejo de novo à porta do consultório, o senhor Malvino demora, deve ter conteúdo, o que contar. Louco.

Escuto, espicho o ouvido pra escutar o relato do senhor Malvino, fala que trai a mulher, mas que está brocha. Eu que não. Moro com mulher. Meu filho chuta. Vontade de. Vou ao banheiro, mas não consigo. O remédio prende o ventre. O remédio prende a gente. Não vou parir agora.

O senhor Malvino sai, tem olhos vermelhos, vejo que chorou. Ainda pude ouvir um tanto a admoestação do meu psiquiatra, que é também psiquiatra do senhor Malvino, velho brocha inseguro, chorão. Deve sofrer.

Eu entro, meu psiquiatra me olha, me olha nos olhos, não nas coxas, me ignora, diz que em breve suspende o remédio. Me preparei tanto. Ele não fala, só olha, Eu falo, falo muito, destrambelho. Conto que desejo a neta do velho do café, conto que desejo a mulher que vive comigo, mas que não acho normal, que queria era mostrar as pernas, vai entender minha cabeça louca. Ele olha, acho que olha pra mim, porque ele se vira a cada olhada que dirijo a suas coxas, se tem as pernas abertas ele as fecha, se cruza as pernas juntas acho que pensa que olho seu rabo, então senta-se masculamente, como que se punindo por me ter oferecido o rabo. Doido.

Também me pego me punindo se cruzando as pernas, então pigarreio e falo qualquer grosseria pra disfarçar. Mas lembro da gravidez, meu filho por nascer, acho que de hoje não passa. Ele analisa as posições, transfere pra mim suas inseguranças, o louco ali não é ele, afinal. Questiona o que significa cada mudança de posição desconfortável, porque me sento assim ou assado. Assada?

Obtempero, justifico, ele pondera, diz que também, a conversa flui, tudo flui com ele, mostro então as coxas, olho pras dele também, confissões me arranca conto tudo, tenho que contar, me cobra tão caro. Mas por contar flui, o remédio deixa de segurar meu filho, que pede pra nascer, e a consulta finda. Volte daqui a três meses. Se não voltar não aguento, doutor.

Corro pra casa, ela acordou, passa já um café, me pergunta como foi, digo que tudo bem. Suspendeu o remédio, ainda não, acho que na próxima. O remédio prende o ventre. Meu filho vai nascer. Corro pro banheiro. Talvez perca. Vou. Travo. Volto. Café.

Ela passa um café bem quentinho, enquanto bebo segura minha mão. Aí flui. Dilatação. Facilitação do parto ou abortivo. Corro. Meu filho.

Sento no vaso e o todo que o remédio prendeu vem ao mundo meu filho, meu filho que não flui, o ventre preso, meu filho vai, meu filho boia, a descarga em círculos pela centrípeta força leva meu filho abaixo, o rodamoinho leva, traga meu filho minha obra se vai pelo esgoto. Mais três meses até a próxima consulta.

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