quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Em 3 de dezembro, o escritor Flávio Viegas Amoreira publicou aqui na Revista Pausa e no site Cronópios o conto Uma mesa na Augusta (leia aqui); da França, o pesquisador e crítico literário Jediel Gonçalves envia o artigo Decifrações na mesa de um bar, que comenta a peça do poeta. Gonçalves é formado em Letras Modernas pela Universidade de São Paulo; mestre em Literatura Francesa pela Université de Provence Aix-Marseille I, é membro do Laboratório de Estudos Intersemióticos; Pesquisador em literatura francesa dos séculos XIX e XX; crítico literário; pesquisador das relações e implicações/traduções das artes plásticas no universo da criação literária. Atualmente realiza um estudo intersemiótico sobre a recepção de obras plásticas na obra literária do escritor francês Marcel Proust. Ele mantém o blog Literatura: carnaval da linguagem.

Jediel Gonçalves

Um lugar chamado “percepção”. Além de responder a uma pressão psíquica, esta percepção está justamente articulada ao impulso na direção da escritura, ao desejo (sob forma de espera) de escrever. O enredo não pode começar simplesmente de “atrás dos montes”, de uma mesmice poética, sem novidade alguma, de um romantismo pastoral, mas deve prover uma solução particular para a divisão subjetiva do narrador. Para isso, a literatura é chamada a reconciliar o corpo de gozo (“suporte literário”, scriptor, inscrito no prazer e escrevente), torturado pelo motivo da espera, e o sujeito que está exilado em si mesmo na mesa de um bar.

Corpo e pulsão
O desejo de escrever, ou gozo da escrita, é recuperado pela via pulsional. A “literatura” aparece no conto de Flavio Viegas Amoreira não somente como um meio de viver, mas como parte complexa da vida: a espera (espera-se o quê?).

Literatura, ou poder criativo, como espera
Para que no narrador consiga satisfazer o gozo da escrita, é preciso continuar a escrever diariamente.
A prática dessa escritura mitiga a violência de tensões internas do narrador. De qualquer forma, a escrita guarda em si o movimento latente do sujeito: existe um impulso para a escrita que reconcilia o sujeito com ele mesmo, no sentido de que ela provê, sob forma de expressão, uma solução particular para sua divisão. E por isso esse sujeito pede por âncoras. Não é um desejo sublimado que o sujeito aqui tenta procurar, mas um desejo de escrever alguma coisa, de substituir a parte insignificante do episódio amoroso para abraçar os cadernos de rascunhos.

Sem querer, o narrador substitui a complexidade da vida pela precipitação do desejo literário. Esforça-se em direção à escritura pelas representações (pulsionais) sensoriais. A megalópole, mega imagem sensorial, entra no fazer poético como material coletado, e iconiza-se como tal. Os movimentos da cidade se sobrepõem uns aos outros, até atingir uma forma mais ou menos hieroglífica. Imagem mental se transforma em imagem escrita; matéria precipitada pela pulsão se converte em scripture. O narrador adentra o universo da criação artística, libera, ex-ternaliza todo o traumatismo, passando de uma posição passiva (pois transcreve o enigma das imagens da cidade em produto da criação) a uma posição ativa, a do sonhador que “alucina”, escrevendo, fora daquilo de que ele quase foi o objeto alucinado.

Uma vez traçados no papel, esses sonhos, essas “alucinações”, não são estáticos, ganham vida. O narrador se põe a escrever uma história que não se reproduz no conto que o leitor de Amoreira está lendo. Mas o mais importante no conto não é nos dar esse acesso à estória escrita pelo narrador, mas buscar restaurar as faltas de sua própria vida com a literatura. Na verdade, aqui, se coloca uma história que repete algo da pulsão de escrever, que – buscando reconciliar o sujeito com as privações de sua existência amorosa (eró-tica, no sentido menos sexual da palavra, de alguém que goza de experiência amorosa) – coloca o sujeito antes do objeto. Ou seja, muito antes de escrever, o sujeito deseja saber porque espera. A espera é uma forma preparativa para algo que será escrito a partir desse desejo. E isto vale para os mitos, as ficções, as teorias, a poesia. De qualquer forma, o narrador goza dessa espera.

A espera deixa de ser elemento problemático para tornar-se elemento de eficácia e efeitos. Quando o narrador se concentra no fato de esperar, todos os motivos vêm desencadeados nos mesmos planos. Há um “enchimento” na espera, e um esvaziamento na literatura. E é esse esvaziamento, “néantissement”, segundo Sartre, que nos interessa. O néant criador. E essa literatura não tem por fim achar, mas testemunhar que insatisfeitamente ela é buscada. A escrita parece caminhar pelo labirinto das suas próprias galerias: um pouco trechos de textos que geram ainda mais textos. A literatura constitui o ponto de partida para uma reflexão. Quem esperava não chegou, quem chegou, mesmo, foi a literatura, a criação poética, criando uma arte de ser dentro de uma arte de parecer. Não são ilusionismos, mas sim, fascinação pela palavra, pela escrita. Uma passagem da espera virtual para um apego à palavra.

No conto há também um encontro desse narrador com o Tempo. Que Tempo é esse? Não é o tempo perdido que passou a esperar pelo amante; é o tempo ganho que faz multiplicar o sinal de dois pontos (:) no texto. Escreve. É o tempo entre a escuta do mundo e a transferência para a escrita. Tempo de escuta-escrita. O tempo que vai ajudar o narrador a terminar sua frase. Uma frase-viagem. Tão longa na decifração! É o tempo para compreender. Tempo da coisa e do vestígio.

O narrador não perde somente a pessoa que não veio ao encontro. Ele perde o real. No conto, notamos que o real é visto como o impossível, aquilo que é radicalmente perdido, excluído do simbólico. A literatura exige deste narrador uma simbolização para tornar-se categoria do possível. Escrevendo, esse narrador maneja o real como “o expulso do sentido, o impossível como tal” ( ), segundo Jacques Lacan. O narrador mergulha no real da literatura, no real que não é o mundo e não há a menor esperança de alcançá-lo. Real que escreve o que é estritamente impensável. Um real onde tudo resta findo. Um real, oco, de poesia, talvez.

Há um recolhimento do sujeito, uma rejeição do mundo externo. Espécie de entrega a um mar silencioso que pode, em muitos casos, ser um requisito do pensamento e da imaginação scriptural.

Tomar a criação poética, à pílulas, durante o momento de espera. A “espera” seria assim um símile para provocar a arte literária. Ela assinala um procedimento interessante: ela evoca um ato de se voltar para si mesma (espera-se um, mas chega o outro), e serve-se de uma expressão que a imagem de “literatura” autoriza para fortalecer a própria engrenagem poética. Medita-se, inquire-se, sonda-se, envolvendo o leitor num exercício de lúcida reflexão que revela uma forte consciência dos mecanismos implicados nos processos de significação. A espera é uma vigília. Há um magma em expansão que é sustentado na dupla “literatura e espera”. Parece haver um móbil a arrancar do corpo a fala, um estado de inércia em busca do inalcançável. Os impulsos são ascendentes, mas não são impulsos para um absoluto, é um impulso para a multiplicidade de vozes, para uma extensão reflexa para o olhar daquele que espera interroga (por que ele não vem?). Há um horizonte insatisfeito. Escreve-se para esquecer que escreve num exercício circular?

(1) LACAN, Jacques. Seminário R.S.I (inédito). Lição de 11 de março de 1975.p.32.

Referências:
Céline MASSON, L’Angoisse et la matière, Paris, L’Harmattan, 2001.
Éric BENOIT. Néant Sonore, Mallarmé ou la traversée des paradoxes, Bordeaux, Droz, 2007.
Hanna ARENDT ; Hermman Broch, Création Littéraire et Connaissance, Paris, Gallimard, 1985.
Jacques LACAN. Seminário R.S.I (inédito). Lição de 11 de março de 1975.
Joël CLERGET, La pulsion et ses tours, la voix, le sein, les fèces, le regard, Lyon, PUL, 2000.

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