Alessandro Atanes, para a coluna Porto Literário do Portogente
Escrevi há algumas semanas sobre como o escritor chileno Roberto Bolaño, um menino de 9 anos quando o Brasil conquistou o Mundial em seu país em 1962, se identificava com o camisa 11 Pepe, da seleção e do Santos Futebol clube (Americanidades I). Hoje, vou de Bolaño a Santos de novo, mas desta vez com uma escala no porto de Buenos Aires.
Na primeira parte do romance 2666, o narrador nos conta a história de uma viúva alemã amante das artes e das viagens (2666 foi publicado em português no ano passado, mas o texto citado é tradução minha feita a partir da edição em espanhol):
Vale notar: apesar de ser um carregamento de produtos diferentes, a figura nos mostra os carregadores, sempre os mesmos, da mesma forma que Bolaño os descreve, como “formigas”, assim como o “calor vaporoso” que sobe do porto.
Há outra palavrinha do texto – “horror” – que merece ser destacada na pintura. Quinquela representa o horror do trabalho portuário em um detalhe: repare na garra do guindaste no canto superior direito, desenhada como uma mandíbula gigantesca (a própria palavra “garra” já revela muito da natureza animalesca dos guindastes).
Vale trazer outra vez para a coluna o romance Navios Iluminados, de Ranulpho Prata, publicado em 1937 e que mostra o bairro portuário de Santos, o Macuco, entre 1927 e o início da década seguinte. O autor, um médico pneumologista que atendia estivadores na Santa Casa e no ambulatório da Companhia Docas, também se aproveitou da natureza animalesca dos guindastes para mostrar uma operação de descarga de carvão em nosso porto:
Pós escrito
Cenas velhas, não é, sobre dois portos latino-americanos na década de 20? Mas basta uma olhadinha em torno de nossa cidade, os guindastes estão lá, cada vez maiores, só esperando um sinal para nos invadir e nos destruir como “formigas”, esses dinossauros metálicos espalhados pela beira do cais.
Os guindastes esperam...
Pós escrito II
Links de artigos sobre a obra portuária de Quinquela e sua relação com a obra de Ranulpho Prata:
As cores dos bairros portuários, 13/02/2007
O pintor proletário do Porto de Buenos Aires, 20/02/2007
Monstros da Boca e do cais de Santos, 24/06/2008
Referências:
Roberto Bolaño. 2666. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2004.
María Torres (coordenação editorial). Pintura Argentina – Quinquela y Victorica. Buenos Aires: Departamento de Promoción Cultural del Grupo Velox, 2001.
Quinquela en Mendoza. Catálogo da exposição no Centro Cultural Espacio Contemporáneo del Arte, set-out/2001.
Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Santos: Prefeitura Municipal de Santos e Scritta, 1996 (1ª edição 1937).
Ranulpho Prata. Vapores Iluminados. Traduzido para o espanhol por Benjamin del Garay. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1940.
Escrevi há algumas semanas sobre como o escritor chileno Roberto Bolaño, um menino de 9 anos quando o Brasil conquistou o Mundial em seu país em 1962, se identificava com o camisa 11 Pepe, da seleção e do Santos Futebol clube (Americanidades I). Hoje, vou de Bolaño a Santos de novo, mas desta vez com uma escala no porto de Buenos Aires.
Na primeira parte do romance 2666, o narrador nos conta a história de uma viúva alemã amante das artes e das viagens (2666 foi publicado em português no ano passado, mas o texto citado é tradução minha feita a partir da edição em espanhol):
.... inclusive em uma de suas viagens, um cruzeiro inesquecível, havia chegado a Buenos Aires, em 1927 ou 1928, quando esta cidade era um empório da carne e os navios frigoríficos saíam do porto carregados de carne, um espetáculo digno de ser contemplado, centenas de navios que chegavam vazios e que saíam carregados com toneladas de carne destinadas a todo o mundo, e quando ela, a senhora, aparecia no convés, à noite, por exemplo, cochilando ou enjoada ou dolorida, bastava se apoiar na grade e deixar que os olhos se acostumassem e então a visão do porto era estremecedora e levava embora de uma só vez os restos de sono ou os restos do enjoo ou os restos da dor, só havia espaço no sistema nervoso para se render incondicionalmente àquela imagem, o desfile de imigrantes que como formigas subiam aos porões dos navios a carne de milhares de vacas mortas, os movimentos dos palets carregados com a carne de milhares de novilhos sacrificados, e a cor vaporosa que ia tingindo cada canto do porto, desde que amanhecia até o anoitecer e inclusive durante os turnos da noite, uma cor vermelha de filé mal passado, de chuleta, de bife, de costela apenas passada na grelha, que horror, menos mal que a senhora, que então não era viúva, só viveu isso durante a primeira noite, depois desembarcaram e se acomodaram em um dos hotéis mais caros de Buenos Aires...A descrição literária de Bolaño do porto de La Boca pode ser colocada lado a lado a uma pintura já apresentada aqui, Descargando carbón, de 1928, ano da viagem da viúva alemã, do pintor Quinquela Martín.
Vale notar: apesar de ser um carregamento de produtos diferentes, a figura nos mostra os carregadores, sempre os mesmos, da mesma forma que Bolaño os descreve, como “formigas”, assim como o “calor vaporoso” que sobe do porto.
Há outra palavrinha do texto – “horror” – que merece ser destacada na pintura. Quinquela representa o horror do trabalho portuário em um detalhe: repare na garra do guindaste no canto superior direito, desenhada como uma mandíbula gigantesca (a própria palavra “garra” já revela muito da natureza animalesca dos guindastes).
Vale trazer outra vez para a coluna o romance Navios Iluminados, de Ranulpho Prata, publicado em 1937 e que mostra o bairro portuário de Santos, o Macuco, entre 1927 e o início da década seguinte. O autor, um médico pneumologista que atendia estivadores na Santa Casa e no ambulatório da Companhia Docas, também se aproveitou da natureza animalesca dos guindastes para mostrar uma operação de descarga de carvão em nosso porto:
O [guindaste] palmeira botou toda sua eletricidade, esticou o rabo possante e levantou a grab que lá se foi pelos ares, como uma aranha descomunal, em procura do porão do cargueiro inglês Amberton, que trazia carvão de Cardiff.
O barco vinha de barriga cheia, à ímpar, a carga beijando a boca da escotilha. A máquina escancarou as mandíbulas medonhas, enterrou os dentes na massa negra e derramou na galera três toneladas de carvão de uma só vez. Chegara recentemente e eram as primeiras experiências que faziam. O pessoal da turma [de estivadores] 65 espiava, curioso, o manejo da bicha..
Pós escrito
Cenas velhas, não é, sobre dois portos latino-americanos na década de 20? Mas basta uma olhadinha em torno de nossa cidade, os guindastes estão lá, cada vez maiores, só esperando um sinal para nos invadir e nos destruir como “formigas”, esses dinossauros metálicos espalhados pela beira do cais.
Os guindastes esperam...
Pós escrito II
Links de artigos sobre a obra portuária de Quinquela e sua relação com a obra de Ranulpho Prata:
As cores dos bairros portuários, 13/02/2007
O pintor proletário do Porto de Buenos Aires, 20/02/2007
Monstros da Boca e do cais de Santos, 24/06/2008
Referências:
Roberto Bolaño. 2666. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2004.
María Torres (coordenação editorial). Pintura Argentina – Quinquela y Victorica. Buenos Aires: Departamento de Promoción Cultural del Grupo Velox, 2001.
Quinquela en Mendoza. Catálogo da exposição no Centro Cultural Espacio Contemporáneo del Arte, set-out/2001.
Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Santos: Prefeitura Municipal de Santos e Scritta, 1996 (1ª edição 1937).
Ranulpho Prata. Vapores Iluminados. Traduzido para o espanhol por Benjamin del Garay. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1940.
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