Alessandro Atanes
Em um dos artigos da série Americanidades afirmei como o escritor uruguaio Mario Benedetti (foto,1920-2009) e o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) representam momentos distintos em relação às ditaduras do Cone Sul (Uruguai, Brasil, Chile e Argentina). O primeiro escreveu uma obra que ficcionalizou a experiência do enfrentamento; o segundo, ainda que tenha vivido e enfrentado o golpe no Chile em 1973, é responsável por uma ficção dos herdeiros da, digamos assim, derrota democrática. Hoje veremos como isso ocorre em um exemplo.
No já comentado romance Esquina con una primavera rota, de 1982 (publicado em plena redemocratização), uma família sofre diretamente com a ditadura. Acompanhamos uma mulher com a filha e o sogro no exílio enquanto o marido, preso político, enfrenta as prisões do regime. Cada capítulo do livro traz um dos personagens em primeira pessoa. A expectativa de todos é o reencontro, para o qual converge a trama.
Em Sensini, conto de Bolaño do volume Llamadas telefónicas, de 1997 (em plenos anos neoliberais) ainda não publicado em português, acompanhamos outra família no exílio, a de Sensini, um escritor argentino que, após fugir para a Catalunha, adota a Espanha como lar, onde vive com a esposa e a filha estudante de medicina. Lá ele trava uma amizade com um jovem autor latino-americano (o alter ego de Bolaño) e os dois passam a procurar juntos concursos literários para conseguir o dinheiro das premiações.
Enquanto a família do livro de 1982 sofre diretamente com a ditadura, a do conto já se estabilizou em uma nova realidade e espaço, mas como é comum na obra de Bolaño, o passado recente das ditaduras assalta o presente: Sensini recebe uma carta que lhe revela o possível paradeiro de seu filho “desaparecido” pela ditadura, o que o leva de volta a Buenos Aires. Esse salto entre passado e presente faz com que o autor chileno crie uma distância que permite o estranhamento e a reflexão em torno dos temas latino-americanos.
Epílogo
Finalizo este artigo em Juiz de Fora, onde em 31 de março de 1964, o general Olímpio Mourão, com o apoio de outros militares e do governo mineiro, partiu em direção ao Rio de Janeiro para dar o golpe. Talvez valha a pena lembrar que esta é a cidade natal de Amado Couto, personagem de Bolaño (foto) do livro La literatura nazi en América, de 1996 (também inédito em português), no qual cria perfis de escritores fictícios da literatura de nosso continente com inclinação, vamos dizer assim, autoritária. Sem basear-se em fatos reais, ele acerta em cheio na História.
Referências:
Mario Benedetti. Primavera com uma esquina rota. Madri, Espanha: Punto de Lectura, 2008.
Roberto Bolaño. Llamadas telefónicas. Barcelona, Espanha: Anagrama, 1997.
Roberto Bolaño. La literatura nazi en América. Barcelona, Espanha: Seix Barral, 2005 (1ª ed. 1996).
Americanidades I
Americanidades II
Oras bolas, à literatura então! - Americanidades III
Americanidades IV: Bolaño, Buenos Aires, Santos
Alessandro Atanes, jornalista, é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Servidor público de Cubatão, atua na assessoria de imprensa da prefeitura do município.
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