quinta-feira, 17 de março de 2011

Alessandro Atanes

Quando o escritor chileno Roberto Bolaño (foto, 1953-2003) começa a ser discutido pelos cadernos culturais brasileiros na virada do século, a regra foi identificá-lo como um autor que se manifestava contra o realismo maravilhoso de Gabriel García Marquez, Julio Cortázar (já bem diferentes entre si). É a necessidade de criar polêmica. Hoje, apresento um pequeno indício de como Bolaño, em sua originalidade como autor, mais do que rechaçar a geração anterior, avança em seus termos.

Ele está na comparação entre duas aberturas: a de Cem anos de solidão (1967), de García Marquez, um “era uma vez” que dá saltos no tempo e na memória do personagem, e a do romance póstumo de Bolaño 2666 (2004), que adota o procedimento.
Cem anos de solidão
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar o dedo...

2666 (tradução minha)
A primeira vez que Jean-Claude Pelletier leu Benno Von Archimboldi foi no Natal de 1980, em Paris, onde cursava estudos universitários de literatura alemã, com a idade de dezenove anos. O livro em questão era D’Arsonval. O jovem Pelletier ignorava então que esse romance fazia parte de uma trilogia (composta por O Jardim, de tema inglês, A máscara de couro, de tema polonês, assim como D’Arsonval era, evidentemente, de tema francês), mas essa ignorância ou esse vazio ou esse desleixo bibliográfico, que podia ser imputado a sua extrema juventude, não reduziu o ápice de deslumbramento e de admiração que lhe produziu o romance.
Apesar dos universos bem distintos (Macondo e Paris), o paralelismo é evidente: o vai-e-vem temporal (muitos anos depois iria recordar; a primeira vez que leu), a nomeação da cidade, a experiência formadora (conhecer o gelo, ler Archimboldi), a ignorância como o vazio inicial (do universo de Macondo; do mundo da pesquisa acadêmica). Pode-se pesquisar e especular sobre as intenções de Bolaño, mas o fato é que o jogo de espelhos está aí.

Outro procedimento de um grande autor latino-americano adotado por Bolaño, já bastante anotado pela crítica, é o gosto de Jorge Luis Borges pela enumeração de coisas. Exemplos são a listagem de obras do autor fictício Pierre Menard (procedimento também adotado por Bolaño em La literatura nazi en América) e, talvez sua lista mais comentada, a de coisas que podem ser vistas dentro do Aleph, ponto pelo qual são vistos todos os demais pontos do universo. A ela:
O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros (...). Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesma lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existia uma árvores, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página  (...).
E a série segue por mais vinte linhas. Em 2666, Bolaño leva a enumeração a suas últimas consequências. Cito dois casos: o primeiro está em uma conversa telefônica entre o já apresentado Pelletier e seu amigo espanhol Espinoza, outro especialista na obra de Archimboldi. Só sabemos do que conversam pela quantidade de vezes que os termos aparecem no diálogo:
A primeira conversa telefônica, cuja ligação foi feita por Pelletier, começou de maneira difícil (...). Os vinte minutos iniciais tiveram um tom trágico onde a palavra destino foi empregada dez vezes e a palavra amizade vinte e quatro. O nome de Liz Norton [outra especialista em Archimboldi pela qual os dois estão apaixonados] foi pronunciado cinqüenta vezes, nove delas em vão. A palavra Paris foi dita em sete ocasiões. Madri, em oito. A palavra amor foi pronunciada duas vezes, cada um uma. A palavra horror foi pronunciada em seis ocasiões e a palavra felicidades em uma (foi empregada por Espinoza). A palavra resolução foi dita em doze ocasiões. A palavra solipsismo em sete. A palavra eufemismo em dez. A palavra categoria, no singular e plural, em nove. A palavra estruturalismo em uma (Pelletier). O termo literatura norte-americana em três. As palavras jantar e jantamos e café da manhã e sanduíche em dezenove. A palavra olhos e mãos e cabelos em quatorze. Depois a conversa ficou mais fluida.
Esta conversa está na Parte dos Críticos, que abre o romance. Já a quarta de cinco partes, a dos crimes, é ela toda uma lista descritiva de centenas de assassinatos que ocorrem no deserto de Sonora, no México, para onde haviam se dirigido os críticos atrás de Archimboldi, autor recluso que ninguém conhece. Vale a primeira descrição, para termos uma ideia do que nos espera nas 352 páginas (na edição da Anagrama) do capítulo:
A morta apareceu em um pequeno descampado no bairro Las Flores. Vestia camiseta branca de manga comprida e saia de cor amarela, um número acima do seu, até os joelhos. Uns meninos que brincavam no descampado a encontraram e avisaram os pais. A mãe de um deles ligou para a polícia, que apareceu depois de meia hora.
É muito cedo para colocar Bolaño entre os nomes citados acima, mas não dá para dizer que ele não soube aproveitar seus precursores e que estava contra eles. Como o espaço está acabando, fica para a próxima uma aproximação entre Os detetives selvagens, de Bolaño, e O Jogo da Amarelinha, de Cortázar.

Americanidades (I)
Americanidades (Parte II)
Oras bolas, à literatura então! (Americanidades III)
Americanidades IV: Bolaño, Buenos Aires, Santos
Duas famílias no exílio e Bolaño em Juiz de Fora - Americanidades V
Referências:
Gabriel García Marquez. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Ilustrações de Carybé. Rio de Janeiro: Record, sem data.

Roberto Bolaño. 2666. Compactos Anagrama. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2009.

Jorge Luis Borges. O Aleph. Tradução de Flávio José Cardozo. In: Obras completas. Volume I. Vários tradutores. São Paulo: Globo, 1998.

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