quinta-feira, 3 de março de 2011

Márcia Costa

“O maior desafio enfrentado pela cultura artística hoje é o da comunicação”, diz o especialista Nelson Wendel em entrevista para a Revista Pausa


Obra de Mai-Britt Wolthers, artista plástica dinamarquesa que produz em Santos

Pesquisar e registrar a História da Arte é algo que faz parte da vida de Nelson Wendel e de Egydio Colombo Filho há algumas décadas. A vasta experiência destes pesquisadores é fruto principalmente do contato direto com originais de grandes artistas, espalhadas por centenas de museus e instituições culturais no mundo, além do mergulho na bibliografia sobre o tema, seja no ambiente acadêmico ou até mesmo em casa, nas horas de lazer. Todo esse conhecimento é compartilhado semanalmente com os alunos do Ciclo de Estudos sobre Estética e História da Arte, na Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos.

A Campo Visual – Difusão de Cultura, empresa que Egydio e Nelson dirigem, aportou em Santos há três anos, trazendo na bagagem um projeto de nome sugestivo: “Vamos mudar de assunto?”. Inicialmente a dupla começou a ministrar aulas sobre artes visuais na Livraria Realejo. No ano passado, firmou parceria com a Pinacoteca Benedicto Calixto de Santos e para lá transferiu o seu ciclo de estudos, onde pretende implantar o seu projeto de difusão cultural mais amplo. Foi assim que Santos ganhou dois aliados de peso quando o assunto é arte.

O currículo dos dois intelectuais dá uma pista do que eles têm a oferecer à cidade. Nelson, graduado em História, é professor licenciado pela Universidade Católica de Minas Gerais, técnico em Engenharia do Conhecimento, pesquisador em História da Arte e Estética e pesquisador em História da Arte. Egydio, mestre em Artes Visuais, arquiteto pela Faculdade de Arquitetura da USP, tem especialização em Museologia também pela USP e foi diretor do Museu Estadual de São Luis do Paraitinga. Em São Paulo é professor de Estética, História da Arte e coordena o curso de pós-graduação em História da Arte da Universidade de Guarulhos.

Ver, compreender e sentir a arte é a proposta do ciclo de estudos que Nelson e Egydio executam na Pinacoteca, mas que pode ser aplicado em diversas instituições ou espaços da cidade. O ciclo estrutura-se em módulos, compostos de programas de estudo cujos conteúdos são organizados a partir das teorias da Estética e da História da Arte e aplicáveis sob a forma de palestras, ciclo de estudos ou seminários. Nos programas de estudo colocam-se em debate análise e reflexões sobre algumas das manifestações artístico-culturais das civilizações em seus diversos períodos históricos. Os módulos estão reunidos em dois grupos segundo sua natureza: módulos para formação de sintaxes visuais (repertório visual) e módulos para exercícios do olhar (apreciação estética).

Na sala de aula os olhos dos alunos voltam-se para a tela, ocupada por diversas obras representativas dos muitos movimentos estéticos que marcaram a História. Ao mesmo tempo em que o curso debruça-se sobre a questão estética, também passeia pela história da cultura humana, através de suas manifestações artísticas, resultando na fixação de referências culturais e a intensificação da consciência histórica. A atividade atrai médicos, engenheiros, artistas, estudantes de cultura, gente das mais diversas áreas interessada em ampliar o seu conhecimento sobre arte. No dia 14 de março as portas da Pinacoteca voltam a se abrir para as aulas ministradas por Nelson, sempre às segundas e terças-feiras, em dois horários: das 17h às 19h e das 19h30 às 21h30. Quem quiser saber mais sobre o curso pode escrever para o próprio professor Nelson pelo endereço eletrônico colombo@sili.com.br. Inscrições pelo telefone (13) 3288-2260 ou na Pinacoteca (Avenida Bartolomeu de Gusmão, 15, Boqueirão, Santos).

Mas o “ Vamos mudar de assunto?” vai além do ciclo de estudos e colabora para o amadurecimento do público de Artes Visuais na cidades. Ele inclui ainda programas de formação artístico-cultural oferecidos sob a forma de bolsas de estudo a jovens talentos, escolhidos mediante seleção pela qualidade de seu potencial artístico e patrocinados por um “pool” de empresas ressaltando-se o seu caráter de investimento e não de filantropia. Estes programas serão aplicados sob a forma de oficinas culturais. O projeto encontra-se em fase de ante-projeto, levantamentos prévios, avaliação de potencial de patrocinadores, escolas de formação técnica em artes visuais, etc.

Enquanto este projeto segue sendo gestado, Nelson e Egydio prosseguem na sua bela rotina de ensinar sobre arte, algo que fazem com maestria e prazer. Na entrevista a seguir, Nelson discute o conceito de cultura, o papel da História da Arte, os desafios dos artistas no século XXI e sobre muitos outros temas caros da contemporaneidade. Uma verdadeira aula de História da Arte.

Como a arte começou a fazer parte da sua vida profissional?
O interesse por arte esteve sempre presente em minha vida, desde a infância, proveniente que sou de uma família que considera arte e cultura como um assunto importante e digno de ser cultivado. Pesquisa metódica sobre arte começou logo após a alfabetização, com leituras orientadas, intensificando-se na universidade e nas viagens freqüentes, onde visitas a museus e galerias é um item obrigatório. E agora, após a aposentadoria, quero acrescentar ao interesse sobre o assunto o prazer de repartir esta experiência adquirida, o que já estou fazendo através do projeto “Vamos Mudar de Assunto”.

Qual o significado de cultura?
Cultura, em seu sentido amplo, representa a forma de ação dos seres humanos na natureza de modo a interagir com ela, produzindo bens e significados de várias ordens qualitativas. Cultura é um processo, quer dizer, não tem apenas uma conotação e um grupo de significados, senão uma trama tecida por fios das crenças, da subsistência, da memória individual, das ações do grupo social no meio ambiente, da arte que provém da reflexão destes atos e de outros fatores de ordem geográfica, ambiental e tradicional que produzem um resultado complexo que, apesar de diferente em sua forma, tempo, espaço e colorido, possui aspectos constantes em todos os agrupamentos humanos.

Erudição é um termo muito diferente de cultura. Indivíduos cultos são aqueles que otimizam sua relação com o mundo exterior por meio de sua inteligência e sensibilidade produzindo efeitos positivos de proteção e preservação de sua espécie. Erudição é o conhecimento profundo de um determinado aspecto da cultura – língua, música, literatura, técnica ou tecnologia. Nota-se que existe uma diferença. Cada ser humano, por tradição, protege suas heranças na manutenção de seus procedimentos culturais. Todo ser humano, em determinadas medidas, possui cultura e exerce seus procedimentos. Eruditos existem para aprofundar determinados conhecimentos e traçar relações diversas.

Como é a arte do século XXI?
Durante as primeiras décadas do século XX as artes plásticas passaram por uma re-conceituação. Até o final do século XIX, quando as transformações provocadas pelo Impressionismo e o Pós-Impressionismo, e que resultam no Abstracionismo, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, incluindo a Rússia, as chamadas artes plásticas seguiam um caminho relativamente estável – divisão clássica de ofícios: os pintores, os escultores, os músicos, os arquitetos, os joalheiros, e assim por diante. Uma pintura era uma pintura e uma escultura era uma escultura. Não havia o que se discutir.

Entre a primeira e a segunda guerras mundiais as vanguardas artísticas se encarregam de romper com os limites de definição de obra de arte, ainda mais com a chegada de novas tecnologias – como a fotografia, a gravação de sons e imagens em movimento, entre outras. Esta ruptura das vanguardas (mais popularmente conhecida como Modernismo) irá manter a obra de arte em constante re-definição. Uma escultura cinética (que apresenta movimento – um móbile, por exemplo) não é só mais um objeto estático, é uma proposta de ocupação de espaço. Uma pintura já não é mais bela, será sua idéia que apresentará ou não qualidades estéticas. A noção de beleza, do belo, do harmônico, estabelecida no Ocidente até então (décadas de 20-30), caem por terra. O espaço será ocupado por novas teorias e novas abordagens. Com o fim da segunda guerra mundial o mundo se reestrutura de modo completamente diferente do que havia sido até então – viagens intercontinentais, televisão, satélites, comunicação rápida, fácil e relativamente barata. Qualquer pessoa, em determinadas condições, podia ir a qualquer lugar, a qualquer hora ou conversar, trocar idéias e informações e conhecer fatos quase que imediatamente.

As artes entram em uma fase de total eliminação de fronteiras – físico - conceituais e de definições. Parodiando Frederico de Morais (respeitado crítico brasileiro), as obras de arte hoje são aquelas que eu e você quisermos definir como tais.

Para o século XXI podemos prever uma instabilidade total na conceituação da obra de arte, ainda mais dentro da terminologia artes plásticas, que cabe somente até o final da segunda guerra mundial. Novas tecnologias provocando novos resultados, novos processos de criação dando espaço a produções inéditas e indefinidas... Apenas algumas certezas – o mundo se encaminha para um descontrole se não forem tomadas providências imediatas quanto ao uso dos bens materiais. A sociedade de consumo tem limites e o modelo que vem sendo adotado é totalmente equivocado. Serviu muito bem até 1800.

A arte será o espelho desta crise definitiva que colocará a humanidade em seu impasse radical – ou transforma-se o modelo de vida adotado no Ocidente e devorado pelo Oriente, como tem sido feito, ou mergulharemos em uma desordem caótica de sérias conseqüências. Neste sentido podemos dizer que os artistas até agora não se deram conta do abismo que se aproxima (como os avestruzes que colocam a cabeça no primeiro buraco que encontram quando surge um problema). Poucos são aqueles que perceberam este impasse. Muito poucos ainda se colocam como criadores de novas ordens estéticas que supram os problemas de ordem política que irão surgir. O século XXI ainda é uma incógnita preocupante com relação às artes visuais.

Quais os desafios que a cultura (no seu significado estrito, de arte) enfrenta hoje?
A pergunta poderia ser formulada de outro modo – quais os desafios que os artistas enfrentam hoje? Assim faço pois as manifestações culturais dos seres humanos através da História sempre enfrentaram e venceram ( nem sempre) muitos desafios. A guerra, por exemplo, é um “fato” cultural e não creio que seja um “desafio” ou algo positivo.

Em assim sendo, o maior desafio enfrentado pela “cultura-artística” hoje é, sob meu ponto de vista, o da comunicação. Comunicação em sua definição pura e simples: emissor, conteúdo, receptor. Cada dia mais os conteúdos, por problemas de comunicação, não têm sido bem elaborados pelos emissores e tampouco recebidos devidamente pelos receptores. Apesar dos avanços extraordinários na tecnologia de comunicações em relação à velocidade das informações (telefonia celular, por exemplo), os conteúdos estão cada vez mais sendo empobrecidos pela incapacidade dos criadores e dos receptores de abarcarem suas plenas significações.
In-comunicação é a ausência ou o excesso de comunicação. A arte hoje enfrenta seu desafio crucial (acredito até que seja um desafio de vida e morte para a arte) que é o da quase que total plenitude de in-comunicação. Veja a “Bienal do Vazio” ou o pacto que as artes visuais fizeram com o neo-liberalismo (isso em todo o planeta), inventando mercados e produzindo uma espécie de “moeda’ artística que esvazia os conteúdos sensíveis das obras de arte. São apenas dois dos inúmeros sintomas dos males por que passa a arte, hoje, em um processo muito difícil de re-invenção e re-significação.

Qual é o papel da pintura em tempos de cultura de massa/indústria cultural ?
A pintura é uma das primeiras manifestações dos seres humanos. O que nos diferencia dos animais irracionais é justamente a capacidade de registrar fatos e dar significado a eles. Há 20.000 anos a humanidade “pinta”. A pintura resiste, com suas diferentes nuances de significação, às modificações sociais, políticas, climáticas, quais forem elas. No entanto, cada coisa em seu lugar. Vivemos um tempo de indefinições – a pintura tem status de alta cultura somente em determinados contextos humanos que a reconhecem como manifestação de qualidade sensível. Dependendo do território onde for enquadrada, a pintura permanecerá como uma das formas mais sublimes do espírito humano. Seu papel será obscurecido pelas novas tecnologias que dão às pessoas impulsos visuais mais rápidos, efêmeros e principalmente mais “baratos”. Walter Benjamin (A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica ) que o diga...

Os grupos sociais que reconhecerem a pintura como uma das formas mais concretas de expressão humana terão melhor chance de sobrevivência ao caos que certamente sobrevirá em poucos anos.

Qual o papel da História da Arte hoje?
Certamente é um dos mais fundamentais – o de documentar e interpretar o desenrolar da evolução do pensamento sensível dos homens – procurando “ensinar” e “educar” as pessoas por meio de suas obras, para que elas não voltem a cometer os mesmos desumanos erros de preconceito, intolerância, ignorância, além da promoção de possíveis melhorias nas qualidades de vida de todos.

Não é um papel de resultados imediatos. A humanidade hoje quer muitas coisas rapidamente para serem devoradas e expulsas de sua vida tão rapidamente quanto possam. A história da arte ajuda-nos a refletir sobre isso (além de outras coisas, é claro) e ainda mais, pode melhorar nossas vidas de modo integral, promovendo equilíbrio e o reconhecimento de nossas limitações.

Qual a sua opinião sobre a produção artística de Santos?
Por estar trabalhando com História da Arte no plano teórico, ainda conheço pouco da produção atual. Sei que a cidade de Santos possui uma grande quantidade de artistas plásticos e artistas visuais, músicos e performers de boa qualidade. Santos sempre foi uma cidade que forneceu para o Brasil nomes significativos nesta área.

Conheci uma pintora de origem dinamarquesa, Mai Britt Wolthers, que faz parte de um grupo de estudos da Pinacoteca Bendito Calixto e que apresenta um trabalho tecnicamente maduro, bem estruturado, de cunho abstrato, com forte influência do grupo COBRA (Copenhaguen, Bruxelas, Amsterdam). Seu trabalho é muito bom e ela promoveu uma mostra de uma fase já terminada sobre a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica, apoiada pela Embaixada da Dinamarca no Brasil. No momento, é esta artista que posso garantir como responsável por uma produção artística de qualidade.

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