sábado, 29 de maio de 2010

Marcelo Ariel
Nota: Continuando a série de compilações das melhores entrevistas com escritores brasileiros, publicadas na internet, segue abaixo a entrevista de Mariana Ianelli, recolhida no site da autora, concedida a Álvaro Alves de Faria e publicada no livro Pastores de Virgílio (Editora Escrituras, 2009).

Mariana Ianelli é o que poderia ter ocorrido de melhor nesta poesia de tantas lamúrias e gente equivocada. Ao primeiro contato com seus poemas tem-se a certeza de que ela é poeta, acima de tudo poeta. Três livros publicados. Livros de poesia. É preciso destacar isso. Poemas escritos por quem já conhece esse ofício de escrever poemas sem se deixar levar pelas facilidades em moda num tempo de barbáries poéticas. Felizmente ainda existem poetas como ela. Um olhar para o mundo. Mariana Ianelli, nascida em São Paulo, em 1979, acredita que o poema é um ato de fé. Acredita que a poesia seja um sacerdócio. Que seja. E assim ela segue os primeiros passos em livros que já podem ser considerados marcantes.

A trajetória é ainda pequena, mas dá mostras de sua identidade. Destaque-se Duas Chagas, no qual ela explica seu trabalho de unir “a beleza da palavra poética a um certo conteúdo de solidão”. Aos 25 anos, ela observa que seu livro – e certamente os outros dois – resultou de um pacto necessário com a dor. As palavras de Mariana são de significados vários. Os poemas que escreve são peças de elaboração de consciência poética. Ela se diz “um pequeno grão no deserto de um século”. Tem na poesia uma crença. Uma crença difícil de caminhos ásperos. A exemplo de outras mulheres poetas – como Eunice Arruda, Dalila Teles Veras, Neide Archanjo, Ilka Brunhilde Laurito, Mirian Paglia Costa, Astrid Cabral, Thereza Christina Rocque da Motta, e tantas outras – Mariana Ianelli é mais que uma afirmação poética. Que siga assim, como ela diz no seu poema Para Amanhã:

Faz tua casa um fragmento de alma,
Cobre o teu pensamento.
Vai, que estás em tempo de colher-te,
Um minuto para ser teu.
Interrompe tuas regatas desbravadas,
Saídas das marinas solitárias,
E retribui para a terra a demonstração das tuas patas.
Que não há segunda vez,
Um homem se esgalha da marga ou desiste.
Para a terra, dá os teus domingos desagradáveis e os risíveis.
Fica lasso, pétala urdida no sol e na água.
Vai, capaz de crescer.


Álvaro Alves de Faria: Tenho em você uma revelação na poesia deste pobre país. É bom saber, nesse caso, que o pobre país não vive só de angústia. É muito difícil encontrar, na sua idade, poetas como você. Não é elogio. É uma constatação que fiz desde que a conheci. Como é que você começou a escrever poesia? O que a levou a escrever poesia?
Mariana Ianelli: Desde a adolescência preferi estar em casa. Felizmente tive a oportunidade de fazer essa escolha. Então, quase todas as noites, eu transitava do quarto de minha mãe, onde havia a biblioteca, para o meu quarto, onde eu me fechava para ler. Foi assim que, por volta dos quinze anos, conheci os poetas modernistas e comecei a escrever com mais freqüência. Antes disso eu já escrevia alguns contos e poemas, mas o que influenciou o início desse caminho, penso eu, foi ter visto a morte no corpo de uma colega de escola. Acontece assim, de repente, certo dia. Uma criança se levanta, sai para o fundo de um quintal e passa horas brincando. Mas por um descuido e uma série de pequenos incidentes, tudo se acaba. A idéia da morte e o pensamento de Deus me levaram muito cedo àquelas perguntas para as quais nenhuma resposta basta. E a poesia surgiu justamente dessa tentativa de buscar pelo sentido das coisas, no simples gesto de apoiar a cabeça entre as mãos e começar a pensar. Creio que para a poesia não há idade, assim como não se é muito novo ou muito velho para sentir e pensar. Quando a consciência desperta, uma porta se abre. Por ela se pode chegar à loucura, ou ao caminho da arte.

A.A.F
: Você tem três livros publicados aos 25 anos e já está caminhando para o quarto. O que significa isso para você?
M.I: Cada livro publicado é um passo que se dá. Em seqüência, eles formam um percurso. Talvez um percurso da esperança ao desespero, mas, enfim, o que vale é estar sempre caminhando, não importa exatamente a que destino; estar sempre se indagando, embora sem jamais encontrar uma resposta que seja apaziguadora ou definitiva. Afinal, a poesia fala sobre a vida, a morte, o tempo, o amor, e tantas outras questões da existência, tendo sempre o homem como fim. E esta é sua única certeza. Todo o resto faz parte de uma verdade que só se mostra por completo na medida do indizível. Não à toa se diz, muitas vezes, que os livros de um escritor são partes de um único grande livro nunca terminado. Um poema não é apenas fruto do pensamento, mas é também um pensamento em processo, um movimento que tende ao infinito. Percebi isso com os poemas de Duas Chagas. E, mais tarde, novamente, com Passagens, um livro que dividi em cinco partes, mas que, em seu conjunto, possui uma unidade implícita. Mesmo o título do meu primeiro livro, Trajetória de antes, já apontava para o início de um caminho, ainda que de maneira intuitiva.

A.A.F:
Já houve quem dissesse que a poesia é um sacerdócio. Você acredita nisso?
M.I: Inteiramente. Penso que o poema é um ato de fé do homem em vista do próprio homem. Por que escrever senão para falar a alguém? A experiência com a linguagem provém do nosso espanto diante da realidade, e também do nosso deslumbramento. Todo processo de criação passa por esse desconforto de consciência que leva o poeta a pensar sobre a absurda situação do homem no mundo. E a poesia, em especial, tem esse poder extraordinário de dividir em dois o pão que não basta para um, ou seja, ela nos convida a sermos irmãos de um só pensamento, de um mesmo sentimento do mundo. E falar em fraternidade, hoje, diante de tanto individualismo, consiste já numa atitude transgressora. Mais do que isso, a poesia é um completo modo de ser, um exercício amoroso de resistência contra a bestialidade e de luta pela vida. Nesse sentido, digamos, existencial, a devoção do poeta à palavra é uma devoção de corpo todo, um obstinado voto de confiança do homem no próprio homem, diante do qual desaparecem os limites.

A.A.F:
Qual é sua visão para a poesia brasileira hoje?
M. I:
Fico um pouco aflita com a obsessão dos poetas de hoje pela metalinguagem. Que um escritor reflita sobre o seu ofício e investigue as inúmeras possibilidades que a palavra oferece de falar e de calar, eu compreendo. Aliás, trata-se de um fenômeno típico da modernidade que fez do artista um indispensável crítico de si próprio. Mas quando o poeta se deixa fulminar pela idéia da criação, ele corre o risco de perder de vista a dimensão essencialmente humana da linguagem. E aí está o mal. Falar da criação supõe que se fale do mundo. Imagine Deus especulando sobre o ovo cósmico e sobre a poeira das estrelas sem nunca dar a ver ao homem a humanidade... Qual o sentido disso? O fato é que estamos vivos, absurdamente vivos, e que assistimos escandalizados ao massacre das crianças no ginásio de uma escola, a centenas de cidadãos que explodem dentro de um metrô ou no sexagésimo andar de um escritório, e resistimos. Esta nossa perseverança beira o inominável. Mas para exprimi-la na poesia, antes se deve trilhar uma longa estrada. E é onde reina a crise do pensamento e da fé que o ato da escrita mais do que nunca se afirma como uma perspectiva de transformação das coisas tal como elas nos são dadas. No poema que fala sobre o homem, e para o homem, está a verdadeira metalinguagem.

A.A.F:
Com três livros sérios já publicados acredito que você já tenha percebido o vale de lágrimas que é a poesia brasileira atual, com algumas raríssimas exceções. Você já entrou em contato com as coisas ridículas que andam por aí com amplo amparo de um jornalismo cultural sujo? É difícil para você falar sobre isso?
M.I: Lastimo não só o pouco destaque dado à poesia, na imprensa em geral, mas sobretudo o generoso espaço que se dá a esta ou aquela ciranda de amigos. Os autores que escapam às relações de mercado e coleguismo, ou são nomes já indiscutivelmente consagrados, ou então são dádivas que aparecem como se num raro triunfo da sensibilidade sobre o império da vacuidade jornalística. Quando isso acontece, nós aplaudimos. Num país em que somente um terço da população adulta alfabetizada tem prazer na leitura, a poesia é esta flor que desabrocha no fundo de um abismo sem ser vista, senão por uma caravana de intrépidos aventureiros dispostos a chegar até ela para festejá-la e descobri-la. Penso sempre em Hilda Hilst, que precisou morrer para assumir o lugar que desde há muito merecia. Basta que um artista maior esteja morto para ser honrado em grande estilo. Como se, por estar fora de combate, ele se tornasse estranhamente inofensivo. Por isso continuamos legando ao tempo o privilégio do último juízo.

A.A.F:
Há um momento certo de se escrever um poema?
M.I: Aqui, Álvaro, já que estamos falando na palavra inevitável, feita para ser amada, peço licença para responder com um poema seu, que, para mim, é fruto do essencial: “Há um momento certo / para se escrever um poema. / Uma hora certa. / Há um dia certo / para se escrever um poema. / Uma vida inteira”. Como se depois dele, de alguma maneira, fosse admissível morrer, e cada novo poema fosse também uma espécie de reverdecimento, de realização de um outro ciclo, familiar ao ciclo da terra, que precisa ser trabalhada para gerar e que, quando gera, nada mais faz que devolver a vida a ela mesma, em um desdobramento à primeira vista espontâneo, e, no final das contas, imponderável.

A.A.F: Agradeço muito, Mariana. Desde que conheci você no lançamento do livro Xilogravuras, de Valdir Rocha, acompanhada de seu avô pintor Arcangelo Ianelli, e ao ler seus poemas, senti ali uma jovem poeta especialmente jovem e especialmente poeta, principalmente poeta, com uma poesia que eu não via já há algum tempo. Sempre lhe disse isso. Mas sou até suspeito para falar, já que o poema que você citou é dedicado a você... Assim, ainda nesse mesmo assunto: há algum motivo especial que leva você a escrever um poema?
M.I: Motivos existem vários, mas nenhum que me pareça suficiente para dar conta dessa motivação maior para a escrita que, a meu ver, é sempre a mesma: escrever para bem pensar e bem pensar para bem viver. Tenho para mim que o poema faz o caminho de volta da vida para vida, em muitos sentidos, e que se há tempo perdido é o tempo mal pensado, os dias mal contemplados. Para dizer num poema: “Eu me refaço hoje / Do que ontem me desfiz, / Um dia a menos a perder / E uma palavra encontrada”. Tanto quanto o silêncio, deve-se fazer valer a palavra, merecê-la, dotá-la de densidade, assim como se faz quando se é, quando se vive. Com esse impulso de leitura das coisas é que me vêm os motivos para escrever, que não são outros senão os da vida diante da fé ou da quebra da fé do homem nele mesmo, diante do mal, da paixão, enfim, do inexprimível em tudo aquilo que torna a escrita um momento de encontro dentro dessa absoluta solidão não individual e anônima.

A.A.F: O que noto desde seu o primeiro livro é um poema que corre de maneira delicada e elegante, sem afetação, sem invenções inúteis, felizmente. Um poema que nasce e se revela revelando, também, o zelo no tratamento das palavras...
M.I: Realmente, zelo é a palavra certa, porque o poema, para ser escrito, exige sim muito empenho, muita dedicação, mas, sobretudo, precisa ser amado. E o amor surge em se tecê-lo, em esperar que um verso amadureça a ponto de se tornar inevitável. Um trabalho tão difícil e tão elementar como arar a terra, e uma recompensa tão simples e tão completa como a de um fruto. Entendo que os poetas se preocupem em elaborar métodos próprios de percepção e expressão, que desenvolvam projetos, tracem planos, porque também disso a poesia se alimenta, dessa consciência da linguagem, dessa pesquisa dirigida, e não gratuita, que subjaz à experiência com os sentidos e à experiência do sentido, caso contrário, o acaso não seria um dos elementos enriquecedores da escrita, mas um perigoso imperativo. Por outro lado, nunca é demais lembrar que poesia nenhuma cabe em diretrizes pré-estabelecidas, nem se permite dobrar por qualquer espécie de rigor científico ou determinação sistemática. E nesse ponto, a gratuidade é fundamental, não sob o ponto de vista da “invenção inútil”, mas da graça, da beleza, da aparente espontaneidade do fruto. O poema não tem de exibir seu lastro, suas fundações, não tem de ser um constructo. Ao menos não é aí que reconheço o lugar da poesia, nem da vida. Reconheço-a sim no trabalho vigilante, cotidiano, paciente, mas nem sempre pacífico, da palavra que é feita menos para convencer que para se deixar amar.






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