sexta-feira, 21 de maio de 2010

Ademir Demarchi

O último fim de semana foi de Virada Cultural em São Paulo, ocasião em que a cidade, coalhada de eventos culturais, fica fervendo de pessoas pelas ruas e não pareceria diferente dos outros dias se elas não estivessem preguiçosa e algo langorosamente passeando em vez de correr de um lado a outro a trabalho.

É impossível ir de carro ao Centro, pois vias de circulação são interditadas e as ruas são das pessoas. Isso obriga a caminhadas inusitadas, como a de atravessar a Cracolândia a pé. Respira-se o ar impregnado e convive-se, assim, com uma imensa corja de zumbis viciados em crack, como se comprovássemos mais uma das profecias de Hollywood, de que o mundo será tomado por zumbis.

Ali está, exposta, a comprovação da ausência culposa do Estado e da indiferença de seus dirigentes, especialmente Serra e o prefeito Kassab, batizado Aquassab pela população devido às enchentes. O problema do crack é visto apenas como de segurança. Sob essa lógica, os zumbis são deixados como em campos de concentração, espalhados em grupos nas periferias e lugares degradados como o Centro, onde estão às centenas, matando-se uns aos outros e se consumindo em doenças e desnutrição. Estima-se que são 15 mil os moradores de rua na capital paulista, dos quais numerosíssimos viciados em todo tipo de droga, especialmente no crack, que tem se disseminado de forma impressionante.

Passar por ali faz lembrar um dos sonhos do escritor chileno Roberto Bolaño, no livro 3, ainda não traduzido aqui: "Sonhei que Arquíloco atravessava um deserto de ossos humanos. Se dava ânimos a si próprio: Vamos, Arquíloco, não desfaleças, adiante, adiante".

Os zumbis, homens de todas as idades, mulheres, crianças... às centenas, disputam ávida e agressivamente uma pitada, debilitados e doentios. Um tentava encontrar algo de valor num monte de lixo espalhado e já remexido várias vezes. Outro, chapadézimo, ciscava um pedaço de terra, o lixo afastado, parecia ter encontrado algo infinitesimal na ponta dos dedos.

Enfim na Estação da Luz, como na Estação Finlândia, onde Lênin chegou do exílio para a Revolução, alcança-se enfim a exposição de Andy Warhol, a besta apocalíptica do capitalismo, que, perguntado se acreditava no Sonho Americano disse: não acredito, mas dá pra ganhar uma boa grana. Como espasmos brilhantes do crack, as obras de Warhol.

Ele diz numa das paredes: Viver em Nova York fornece às pessoas incentivos reais para querer coisas que ninguém mais quer, querer coisas que sobraram. Aqui são tantas as pessoas com que se tem de competir que alterar o seu gosto para querer aquilo que os outros querem é a única chance que você tem de conseguir alguma coisa.

E diz: Só se pode viver num lugar de cada vez. Sua vida, enquanto está acontecendo, nunca é muito atmosférica, até se tornar uma memória.
Para aqueles, só fumando o crack para conseguir alguma coisa, ter a sensação falaciosa de alcançar a memória.


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