Escrevi uma vez sobre como o porto de La Boca em Buenos Aires exerce uma função narrativa no conto Emma Zunz, de Jorge Luis Borges. A protagonista que dá nome à obra vai até o cais e ali se prostitui. O motivo é usar a experiência de estar ultrajada para justificar como legítima defesa o assassinato que planejava para a tarde seguinte. O cais é o local do perigo (a floresta das histórias da carochinha), mas é lá, contudo, onde adquire o ultraje (a poção mágica) que faz seu álibi (uma tentativa de estupro) parecer verdadeiro à polícia.
De forma análoga, o porto exerce o mesmo papel narrativo no conto A dama do cachorrinho, em que Anton Tchékhov faz do cais e da beira-mar locais de excitação, de paquera. Ele nos apresenta Ialta, cidade na costa norte do Mar Negro frequentada por jovens e senhoras maduras que se vestiam como jovens, além de maridos em férias e alguns solitários. Lá, dois amantes se conhecem em um café, mas é só uma semana depois, na beira do cais, que trocam o primeiro beijo. A cena ocorre em um dia abafado, com um vendaval levantando poeira e que dava uma sede que “atormentava”, na tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares:
Devido à agitação do mar, o vapor chegou tarde, quando o sol já se havia posto e, antes de atracar, ficou muito tempo virando-se. Anna Serguêievna olhava através do lorgnon [óculos com haste] para o vapor e para os passageiros como a procurar algum conhecido, e seus olhos brilhavam quando se dirigia a Gúrov. Falava muito, suas perguntas eram entrecortadas, ela mesma logo se esquecia do que havia perguntado. Mais tarde perdeu seu lorgnon no meio da aglomeração.Em Tchékhov, a imagem do porto como espaço de ilicitudes e transgressões trabalha para compor a cena em que duas pessoas casadas se rendem à aventura. O primeiro parágrafo do trecho citado mostra o ápice de excitação de Anna simultaneamente à descrição do mar revolto e da dificuldade do navio em atracar. As palavras e expressões escolhidas pelo autor não deixam dúvida de como o clima e os sentimentos da personagem se misturam: agitação, atracar, chegar (ainda que tarde), virar-se, olhar através, procurar, brilhar (os olhos), falar muito, entrecortar.
A multidão bem-vestida se dispersou, os rostos já não eram visíveis, o vento cessou totalmente, mas Gúrov e Anna Serguêievna continuavam parados, como se esperassem para ver se não sairia mais alguém do vapor. Anna Serguêievna já não falava e cheirava as flores, sem olhar para Gúrov.
– O tempo à noite melhorou – disse ele. – Aonde vamos agora? Que acha de irmos a algum lugar?
Ela não respondeu.
Então ele a olhou fixamente, abraçou-a de repente e lhe deu um beijo na boca...
Nesse momento, assim como na cena em que Emma Zunz se prostitui, a linguagem literária revela como os portos estão caracterizados no imaginário coletivo.
Os dois casos – na chave trágica e na romântica – colaboram para a afirmação de que “cada espaço determina, ou pelo menos encoraja, sua própria espécie de história”, como escreveu o pesquisador italiano Fanco Moretti. Não há espaço no cais ou ele não é propício para, por exemplo, nobres buscas por anéis mágicos. Não é este o tipo de história que acontece em portos. O porto é a fronteira, é o cosmopolitismo, é o perigo, é o contato, é o conflito.
De acordo com a Morfologia do Conto, de Vladimir Propp, os portos que conhecemos nos dois contos exercem a função do Espaço do Doador, isto é, são onde os protagonistas têm acesso ao "objeto mágico" (a conquista do ultraje, o clima romântico para o beijo) que dará condições (forças) para chegar ao final da história e empreender seu desafecho (isso é bem nítido em Emma Zunz). O porto é onde a aventura começa.
Não tem final feliz nem triste no porto. O porto é de partidas e chegadas, não de finais.
Referências:
Anton Tchekhóv. A dama do cachorrinho. In: A dama do cachorrinho e outras histórias. Tradução Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Porto Alegre: L&PM, 2010.
Franco Moretti. Atlas do romance europeu. 1800-1900. Tradução Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2003.
Jorge Luis Borges. Emma Zunz. In: O Aleph (1948). In: Obras completas. Volume I. São Paulo: Editora Globo, 1998.
Alessandro Atanes, jornalista, é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Servidor público de Cubatão, atua na assessoria de imprensa da prefeitura do município.
O porto é uma boca aberta. O porto faz fronteira com qualquer outro país que tenha porto. É igual à praia. Cidade que tem praia faz fronteira com qualquer outro lugar ou país banhado pelo mar. Podem não ser filhos da mesma mãe, mas são do mesmo pai.
ResponderExcluirFantasia com o cenário porto é coisa de quem mora numa cidade que não possui porto (ainda que tenha praia). É o mesmo que se fantasiar de pirata no carnaval, quando se sabe historicamente que um pirata, na verdade, é um bandido sem par. Um facínora. Escrever o que quer que seja tendo como cenário o porto é para poucos. Precisa ter muita sintonia com existência ou essência. Caso contrário, vira patuscada, Pollyana Virgem.
Várias vezes afirmei, tanto no meu blog quanto em conversas de botequim regada à cerveja e cachaça, que nada pode ser perfeito se não tiver o mar. Isso me garantia certa antipatia na época em que morava em Belo Horizonte, mas no fundo, acho que todos entendiam. Nisso eu acho que todos nós somos privilegiados.