sexta-feira, 18 de junho de 2010

Após O amor irreverente, a Revista Pausa volta a publicar outro conto de Udo Baingo. Escritor radicado na Alemanha, ele mantém um site sobre suas experiências no país europeu e um blog  com crônicas e ficções. Participa desde 2006 da Oficina de Escritores, junto de nomes da literatura fantástica brasileira atual. Também músico e compositor, é formado em Administração aplicada à Engenharia pela University of Applied Sciences de Jena, Alemanha. O autor mantém ainda uma Representação de Ilustradores e fotógrafos (www.udobaingo.com).
I
Sonhos em uma cidade fantástica

"Quando a noite empardece de verdade,
vou e me mando pelo sonho. Navego...
Se existe algo que eu gosto nessa vida é
de sonhar, porque o sonho é ímpeto até
o âmago. Ímpeto, ímpeto, ímpeto!"
Trecho de uma carta achada em uma estação de trem

Algo me ofusca e num abrir e fechar de olhos sou pássaro: copas de árvores, clarabóias,casas, prédios, viadutos estão lá embaixo. De repente vou para o fundo e estou na cidade. Flutuo por uma avenida aquática. Estou no subterrâneo da cidade e passo por viadutos enormes. Não sei quem sou. Olho para meus pés. Pés? Não sou mais ave, nem sou peixe. Sou bípede. Vejo uma escadaria até uma casa simplória. Subo até ingressar nela. Um bar, sebo ou igreja?

Ouço sons de cânticos. Um padre quer informar o preço do dicionário de sonhos ou qualquer obra de Freud. Ao seu lado um vendedor recita salmos. Diz fazer parte da normalidade deste mundo e eu já o aceitava quando, com jeito de entendedor, o moço do bar teoriza acerca de um livro e um visitante cita todas as possíveis cores escuras. Então o padre, sem permeios e com voz monomaníaca, diz: "se não fôssemos irracionais, veríamos todos os tons de preto na noite, sagrado generoso fim do mundo..." e sorrindo faz o sinal da cruz. Entendo e agradeço, mesmo pedindo o preço, a bênção ou talvez a assistência de algum empregado do sebo.

Era corriqueiro agradecer e emocionar-se no sonho. Em sua vida normal porém, Linardo não tinha ligação emotiva alguma com as pessoas. Quando agradecia, fazia-o por obrigação. No mundo onírico as sensações eram intensas, na realidade vivia dentro de sombras. Seus vizinhos e parentes não entendiam, porém não incitavam antipatia por Linardo. O seu jeito fechado era estranho, mas isso já havia se tornado familiar a todos. Há algum tempo permanecia em casa e não saía à rua, pois não achava importantes as transferências diminutas de conhecimento.

Sozinho, escrevia a carta. Era manhã e a luz do sol cortava o ar em feixes, diagonalmente. Assim ficava, sem sair da cama. Às vezes caía novamente no sono, encostado no travesseiro. Outras vezes deixava o seu olhar passar pelas coisas ao seu redor. Por fim, levantava-se e fazia o café.

"Essa carta não vale nada, porque é uma confissão tola e sem necessidade", dizia. Porém não conseguia parar de escrevê-la. Não a mandaria, não repartiria seu amor com o rosto que olhava da foto sobre a mesa: a sua destinatária. Mas como parar de escrever a carta? Se havia se acostumado à sua presença morna e aconchegante tal qual café com biscoito de tardezinha, era melhor que continuasse assim.


II
O ímpeto
"Sonho contigo como se saísse de uma
porta sobre mim, um alçapão. Nesse
outro acabo sonhando ou vivendo. E ali
você me encontra, largado no nada. Eu
vou embora sonhar a realidade ou
entro em tua casa."
rascunho de carta encontrada no lixo
Linardo passeava pela avenida, sujo, vestido com várias camadas de roupas e trapos. Com as mãos no lixo, procurava alimento. Perambulava entre uma e outra estação de trem. Veículos pesados passavam sobre alicerces de concreto. Carros, ônibus e caminhões. As vibrações causadas pelo peso dos grandes caminhões não paravam. Era andando entre os viadutos enormes da cidade que sentiu algo diferente. Uma tontura? Um ímpeto? Um ímpeto estonteante!

Decidiu morar ali, debaixo do viaduto. Abriu uma barraca. Saía pouco. Não precisava, pois o padre aparecia todo dia. Cheio de compaixão, rezava por sua alma negra. De vez em quando passava também o vendedor do sebo. Trazia livros e papel. Já o pessoal do bar começou a faltar. Morria de fome quando a chuva subiu e invadiu a sua tenda.

Assim, cada vez mais Linardo procurava refúgio na carta. Com a caneta que roubou do bar, escrevia algumas linhas. Dias e mais dias se passaram, até que se sentiu fraco demais para escrever. Onde estava? Não soube. Reparou nas pessoas ao seu redor. Nos seus olhos e rostos os passantes transmitiam um sentimento. Pensamentos se mesclavam a humildade e consolo.

Todo esse mar de humanidade o invadiu de imediato. Por fim, sentia algo que já pensava não existir! Surpreso, retornou sua vista à carta. Contrariado, perguntou-se: "o que ela significava há um minuto atrás e o que ela representa agora?" Sentiu ódio. A raiva se apoderou de seu corpo.

Agarrou o papel com furor. Tentou apagar as letras arranhando-as com as mãos sujas. Em vão. Quis rasgar os papéis, mas não teve forças. Avistou uma lixeira e gritou heureca. Porém, quando tentou jogar a carta nela, primeiro não pôde levantar suas mãos. Depois, viu-se em espasmos, impossibilitado de largá-la dentro da caixa. Com cãibra nas mãos, agoniado, achou que algo parecido com cola não o deixava largar seus escritos. Exausto, descansou.

Mais tarde passava pela roleta da estação. A água espirrou em seus pés. Numa sensação de déja vù, levantou a carta, a fim de não molhá-la. Notando o ridículo da situação, pulou. Já que saltitava, tentou borrar o escrito fazendo espirrar mais água para cima. Encharcou-se inteiro.

Os passantes todos riram dele, mas a carta ainda estava em suas mãos, intacta. Podia ler tudo, linha por linha. Com o corpo anestesiado e febril, deitou-se.

As pessoas aguardavam pelo trem e Linardo estava ali. Segurava a carta como um cantor de tango arrasta seu bandônion pela dor e a loucura. Entrava e saía dos trens. Sentava-se no chão.

Pedia esmolas. Pensou em escrever cego uma nova carta invisível, que não lhe ficasse como penduricalho. Começou a recitá-la. Ficou conhecido em algumas linhas de trem como o mendigo da carta. Quanto mais clamou pelos túneis suas tormentas impetuosas e lamentos, mais pessoas foram ouvindo.

Era carnaval. Quando entrou num trem este acelerou de tal forma que uma garrafa vazia rolou até parar ante seus pés. Levantou e analisou o objeto de vidro. Com a direita enrolou a carta e introduziu-a no invólucro. O padre, que entrara junto com ele, o segurou e levantou com ambas as mãos: "Pague uma, leve duas, é dez por cento de desconto, quem vai levar?"

Benzeu-a frente a todos os leitores desavisados do sebo, fez uma cópia que mandou autenticar e guardar em um arquivo com a inscrição de letras “Bíblia”. Quando o trem permeava um trecho com a lateral aberta, Linardo avistou, entre pilastras, uma baía num por-de-sol de chorar de saudades. Arremessou a garrafa pela janela. Um barulho que vinha de longe se tornou ensurdecedor, quando a porta automática do trem se abriu.

Um bloco de carnaval entrou e festejou com eles. Brincava com a turma, sentia-se animado como há muito tempo não o fazia. Quando um pierrô o beijou a testa, ele arriscou sambar. Ao sair pela porta, o palhaço tirou a peruca e uma vasta cabeleira apareceu. A porta se fechou. O trem continuou correndo pelo fundo da cidade.

Mesmo não mais trazendo a carta consigo, continuou a recitá-la. Fazia-o pelas estações, pelos corredores dos trens, pelas praias, nas avenidas, aléias, enfim onde gente se encontrava.

Incrementou a história sobre um mendigo e um pierrô. Daqui a algum tempo o povo já o conhecia sob o apelido de “Pierrô”.

Da primeira vez lhe pareceu mais uma miragem de sua cidade aquática a ser ignorada: espalhadas por diversas estações, depois pelas ruas e aléias, pela cidade inteira, havia cópias encadernadas da carta, abertas à leitura de todos. Sem titubear, foi arrancando tudo que encontrou. Já em estado de estafa, achou ao final de um dia de muito trabalho uma localidade pela qual já passara. Nela havia novas xeroxes. Era uma luta injusta: se recolhia aqui, novas edições já apareciam ali. Alguém espalhava as cópias.

Não se sabe quanto tempo depois, estava passeando numa rua quando viu um caixote. Dentro deste, a xerox de sua carta. Correu e achou no outro lado da rua alguém manuseando pincel e cola. Uma mulher. Ele atravessava a rua, mas um carro veio, desviou dele e acertou o corpo dela. Correu para salvá-la. Os primeiros socorros apareceram e logo depois a ambulância a levou para o hospital. Ele ficou ali, não o disseram aonde a levariam, muito menos pensaram em trazê-lo junto. A carta, na calçada, em centenas de cópias, exalava um forte perfume e calava.

No início era assim: o silêncio. Ele não podia pensar. Às vezes veio a imagem dela. Aquele “pierrô louco”. Talvez estivesse em coma, sonhando profundo. Tentou achá-la em alguns hospitais, mas ninguém informou ao mendigo se um pierrô ali estaria ou qual era o seu estado de saúde. As enfermeiras chamavam o serviço de segurança para deter o mendigo. Ele era levado até a porta e essa se fechava.


III
O futuro
"O que terá acontecido contigo?
Amanhã, com gosto de Deus, será outro
dia. Ainda hei de postar aquelas
palavras que deixei de te dizer. E
aquilo que não aconteceu haverá de vir."
rascunho de carta encontrada no lixo

Durante algum tempo, Linardo fora dado como perdido. Ao ver um mendigo, seu amigo Tomás pensou que ele se assemelhava muito com alguém conhecido. Só se lembrou de quem depois de chegar em casa. Gustavo, ao ouvir essa história, não acreditou. Para ele, Linardo estava em Machu Picchu ou em Berlim.

"Deve estar se picando por aí, saca? Com certeza um caso perdido. Além disso, esse mendigo puxava o erre que nem Linardo?" Tomás balançou a cabeça: "Não". E pensativo deu uma forte puxada no cigarro de folha de seda.

Seus pais pensavam em diversas versões para o seu paradeiro. Quando uma tia de Linardo falou a seu pai que vira alguém muito parecido com ele numa estação, renovaram-se as esperanças. Ela havia reconhecido a voz de Linardo e perguntou a ele quando voltaria para casa. Ele silenciou e a ignorou. Ela não conseguia imaginar Linardo assim e também não enxergava bem. Por isso foi buscar seu filho, que trabalhava na viação, para tirar a prova e tirá-lo de lá. Quando voltaram, Linardo havia sumido. Esses detalhes deixaram o pai de
Linardo desgostoso. "Meu filho, mendigando?" Ele voltou aos seus afazeres, sem pensar em procurar por ele.
Linardo preferia ficar à paisana. Afinal, ninguém reconhece desconhecidos nesse mundo mesmo. E um mendigo é sempre um desconhecido. Era prazeroso ser reconhecido e confortante ver o rosto de seus amigos e familiares mudar de feição em poucos segundos: partindo de surpreso e esperançoso, passando por reticente, incerto, até chegar à frieza, à tristeza ou simplesmente a alguma mímica de desmerecimento. Se ria depois de irem embora.

Para não voltar a encontrar família ou amigos, mudou de cidade. Lá arranjou um emprego: escrevia textos, frases e poemas. Poderia ser uma congratulação, uma carta bem redigida encomendada por um amante ou amigo ou mesmo um slogan para uma confeitaria. Habitava nos arredores de uma estação de trem. Mas não mais o chão duro. Tinha um quarto simples, com cama arrumada, roupa limpa, todas as refeições inclusive. Nenhuma mordomia, mas uma vida menos marginal. Já se aparentava o Linardo de antigamente, mas ninguém havia por perto que o pudesse reconhecer.

Naquele momento havia pouco o que fazer. Era novamente carnaval e o movimento era fraco. Tinha acabado uma curta redação romântica, que seria lida pelo padre em um casamento debaixo d'água. “Esses loucos!”, pensava, "mas o importante é que pagam bem". Foi aí que um par de muletas se postou à sua frente. Olhou para cima e viu uma moça. “Você poderia me ajudar a atravessar a rua?” Suas mãos, agora livres de epístolas, espasmos e medos sentiram as mãos dela. Era o pierrô da aléia, a mulher acidentada, aquela que copiava a carta que ele tanto recitou por aquela cidade! Ela beijou a sua testa, como naquele dia no metrô.

Choraram juntos.

Logo tomariam juntos chá de jasmim no apartamento dela. O bairro era cheio de casas com jardins, portões, muros e árvores grandes. Na varanda do prédio de arquitetura interessante floriam bonitas acácias. "Você nunca me acharia em São Paulo. Logo depois que melhorei um pouco, minha família me transferiu para o hospital daqui do Rio. Que época louca.", disse. E sorrindo lhe perguntou: "Mas me conta como você chegou aqui?" Ele explicou como conheceu um caminhoneiro e quantas horas demorou para sair da maior cidade da América do Sul pela Marginal...

Sandra, a jovem que o salvou da loucura e da miséria esteve um mês ainda em recuperação. Passaram-se alguns meses e ele estaria novamente no mesmo apartamento, mas desta vez como morador. A mudança foi minúscula, não havia juntado quase nada na pensão que habitara. Depois de mais alguns meses casaram-se. Ele se tornou um profissional na área de publicidade. Cria slogans e escreve textos que trazem sucesso, impulsionando as vendas de diversos produtos. Aclamado com prêmios, pensa dedicar-se à literatura infantil. Ela pensa em ter filhos. Mas não hoje. Trabalha na criação de propaganda, amando e administrando Linardo. São um par perfeito. Pelo menos para as revistas e as colunas sociais.

À noite saíram festejar em uma discoteca VIP mais uma campanha bem sucedida. Danças alegres, ritmos frenéticos, o par tinha força e frisson unidos, sem nunca faltar glamour. Ao lado de Linardo e Sandra, seus colegas e amigos precisavam se esforçar muito para brilhar. E mesmo assim não pareciam alcançá-lo. Os dois eram de uma alegria verdadeira, diziam os desfalcados de inveja. Mas todos acabavam concordando que eram o casal perfeito.

Aproveitando uma pausa do dj, foram em direção ao bar, para recarregar. Uma taça de champanhe seria o brinde perfeito. Lânguida, ela se acomodou no balcão e o mirava fixamente, quando ele se deparou com uma
garrafa. Não a reconheceu de imediato, mas tanto mais o seu conteúdo, depois de abrir o invólucro com sua carta. Em um jato a sua memória lhe devolveu o passado nada remoto.

"Preciso de ar fresco", disse. Olhou para o balcão, um vestido elegante preto lhe chamou a atenção. Grávida, a moça da carta, que limpava copos, obcecada, contava: "preto-carmim, preto-ocro, azul-marinho escuro..."
Navios passam pela baía. Uns entram no cais e descarregam. Outros se vão, com novas mercadorias, para o alto mar. É preciso circundar embarcações encalhadas, presas a sedimentos. Mas cuidado. À noite a maré irá soltar esses navios-fantasmas, que voltarão a navegar, sem direção.

Udo A. Baingo, 20/02/2008


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