domingo, 6 de junho de 2010

Márcia Costa

Patrícia Galvão veio ao meu encontro em Santos, há seis anos, quando a atriz Christiane Tricerri estava na cidade para apresentar no Sesc, onde eu trabalhava como assessora de imprensa, sua peça Pagu Que. Afim de produzirmos uma reportagem para a retransmissora de uma TV local, eu e Christiane circulamos por alguns espaços que marcaram a vida de Pagu/Patrícia: a Cadeia Velha, hoje transformada em Oficina Cultural Pagu, primeiro cárcere da militante política, uma das prisões mais assustadora da década de 30. Caminhamos pelos canais, onde a atriz declamou o poema Canal. Chegamos até a praia, um dos lugares preferidos de Patrícia em Santos.


Christiane Tricerri em Pagu Que

Não houve tempo para visitarmos o túmulo de Patrícia no Cemitério do Paquetá, a praça erguida na entrada da cidade de Santos em sua homenagem, a Praça da Independência, que ela frequentava assiduamente por causa do Bar Regina (ponto de encontro de intelectuais e amantes da arte), o jornal A Tribuna, onde trabalhou nos seus últimos anos de vida, o Teatro Municipal (erguido após uma luta da cidade que ela levou para o jornal), além de outros locais onde Patrícia deixou sua marca. Mas houve tempo suficiente para trocarmos idéias sobre Patrícia, sobre a vida.

Este encontro provocou em mim a dupla admiração por Christiane e Patrícia, duas mulheres apaixonadas pelo teatro, pela arte, pela vida e pelas idéias. Duas mulheres instigantes. Durante nossa conversa, contei a Christiane que gostaria de fazer mestrado e ela rapidamente me sugeriu estudar os textos de Patrícia em A Tribuna, algo ainda não explorado. Essa vereda ficou guardada em minha memória por algum tempo. Anos depois, no mestrado em Comunicação, ao buscar uma jornalista que tivesse dado grande contribuição cultural para a cidade e o país, busquei por Patrícia nas páginas do jornal santista.

Não conheci a fundo Christiane, o que seria muito bacana, mas por meio dela conheci Patrícia e entendi o quanto esta figura a fascinou. Agora nossos caminhos voltam a se cruzar para celebrar o centenário de Patrícia na Casa das Rosas – Christiane vai falar de teatro e de Patrícia, eu falarei sobre o jornalismo de Patrícia junto com Juliana Neves (programação completa aqui). Lá também encontrarei outros e outras fascinados (as) pela obra-vida de Pagu/Patrícia, como a professora Lúcia Teixeira Furlani, há duas décadas debruçada sobre o assunto.

Nas páginas de A Tribuna estão os registros de uma jornalista que ensinou aos seus leitores e a mim sobre literatura, arte, vida. Nelas estão os registros das atividades de Patrícia como agitadora cultural, além de escritora, tradutora e diretora de teatro. Os textos de Patrícia e as entrevistas de testemunhas da época revelaram este seu duplo papel tanto como intelectual presente na redação quanto na vida cultural, práticas que buscou relacionar e às quais se dedicou exclusivamente após abandonar a militância político-partidária.

De 1954 a 1962, criou no jornal colunas semanais sobre literatura, teatro e TV, foi repórter de cultura e fez até o horóscopo, além de ter traduzido na imprensa obras de autores como Sigmund Freud, Octávio Paz, Eugène Ionesco e Henri Heine (algumas destas traduções foram realizadas em parceira com Geraldo Ferraz, seu companheiro e editor do jornal). Em 1956, em uma das primeiras colunas sobre TV no país – e uma das mais duradouras colunas criadas por ela –, intitulada Viu? Viu? Viu?, realizava comentários sobre programas de televisão sob o pseudônimo Gim.

Assinava ainda a coluna Cor Local, onde abordava questões que diziam respeito ao desenvolvimento da cidade. Registrava o que se passava no universo artístico e letrado no espaço dominical Literatura Artes Cultura e na seção Artes e Artistas. É de sua autoria a criação de duas colunas veiculadas no suplemento sociocultural A Tribuna: Palcos e Atores, sobre dramaturgia; e Literatura, sobre a qual abordarei nessa série de artigos. Patrícia, como ela mesma disse, era um canal: o canal da arte.

Literatura foi criada em 1957. A coluna foi fonte de análise na obra de Augusto de Campos Patrícia Galvão. Pagu: Vida-Obra, onde o autor mostra a intenção da jornalista de divulgar, de forma didática, os autores clássicos, escritores brasileiros do século XIX e autores modernos e contemporâneos, abordando tanto trabalhos de escritores nacionais quanto internacionais.

Além dos depoimentos, a historiografia sobre os jornais que circulavam na época comprova que o tipo de produção da coluna Literatura aponta para uma produção de vanguarda, diferenciando-se do jornalismo praticado à época. É possível identificar a mudança de divulgação cultural empreendida pelo jornal A Tribuna após a chegada de Patrícia e Ferraz à redação, verificando as mudanças ocorridas a partir de 1954, quando os intelectuais passam a integrar a equipe do periódico.

Produzir um conteúdo de qualidade era uma preocupação visível no trabalho da jornalista. O aspecto didático dos textos tinha por base um minucioso trabalho de pesquisa e tradução, que incluía comentários bibliográficos de escritores, a publicação de trechos de suas obras e, nas primeiras colunas, fotografias dos autores e das obras. Suas fontes eram as publicações internacionais e nacionais sobre crítica literária – jornais e revistas européias, americanas e brasileiras – a exemplo da revista Nouvelle Revue Française, do jornal The New York Times e do semanário francês Arts, entre os mais importantes suplementos e revistas culturais do País, além do contato com escritores, editores e intelectuais que a informavam sobre a movimentação no campo literário.

A vasta biblioteca que mantinha em casa também lhe fornecia amplo material de pesquisa. A formulação de sua crítica levava em conta a utilização de informações históricas sobre o escritor e sua obra. Ao buscar um aprofundamento interpretativo, relacionando sempre a obra com o campo de produção artística e sua história, Patrícia Galvão, mais que informar seus leitores, fomentava a produção cultural.

As temáticas abordadas por Patrícia eram: autores e suas obras (ênfase no modernismo e cânones literários)‏; eventos culturais locais, nacionais e internacionais. Também discutiu o jornalismo cultural, comentando a produção dos cadernos culturais e a crítica realizada no País, além de políticas culturais locais e nacionais. Sobre os temas, falarei mais especificamente na próxima coluna.

No material produzido por ela na seção Literatura do suplemento A Tribuna identificam-se as características de sua produção cultural na imprensa: a busca constante pela divulgação da vanguarda, a preocupação didática. É forte o diálogo com escritores e intelectuais locais, nacionais e internacionais, a autonomia intelectual e a defesa da arte e da literatura como forma de emancipação humana, busca comum entre aqueles que se embriagam de cultura. Como fez Patrícia, como faz Christiane.


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