domingo, 18 de janeiro de 2015

Muses, de Conrad Roset


Uma análise de "A Comédia de Alissia Bloom", de Manoel Herzog, obra que terá lançamento em São Paulo no dia 31 de janeiro, às 19h, no bar Canto Madalena, em São Paulo.


Por Teodoro Bartoli

"A Comédia de Alissia Bloom" (Editora Patuá, 2014) é um livro singularíssimo, que atrai e inquieta o leitor por inúmeras razões, e isso mesmo sem que se leve em conta o primeiro veículo e a forma como ele foi concebido: diariamente, ao longo de mais ou menos quarenta (este número tão simbólico) ininterruptos dias, com a escrita e instantânea publicação no Facebook, na conta da própria Alissia, moça natural de Bebedouro que despertou a lascívia no coração e corpo de muitos e muitas integrantes desta maravilha estranha, sedutora e um tanto arriscada rede em que vivemos submersos.

E Alissia é mesmo uma beleza. Além de poeta e bailarina, é carente de amor e sexo. O que mais se poderia desejar? Nada, a não ser sua existência carnal, e não apenas na mente inquieta de seu criador, Manoel Herzog. Mas se o perfil de Alissia é fake, seus poemas não são – e lhe dão deliciosa materialidade. Talvez não a que seus admiradores desejariam, mas a que nos faz embarcar em sua doida e saborosa história, toda contada seguindo uma forma fixa, os tercetos rimados (além dos três apêndices, nos quais as formas se alteram, mas também são fixas e rimadas).

Bonita, rica e filha de fazendeiro, Alissia perde num acidente seu marido – até então único amante, aquele que lhe tirara a virgindade. O choque é tamanho que, com ele, vai também o bebê que ela carregava no ventre. E é assim que sua aventura se inicia. Solitária, passado um tempo de recolhimento, o corpo pede ser novamente saciado. Mas algo atrapalha as muitas tentativas de conquista de Alissia e, apesar de sua muita formosura, homem nenhum consuma-lhe o ato, o que a faz reconhecer a existência de algum problema. Aconselhada, vai a São Paulo para um centro de umbanda no tradicional bairro do Bixiga, onde seu problema é supostamente resolvido pela grotesca figura de Vó Barbarella, a mãe de santo.

Mas nem tudo fica bem, e o primeiro amante que arruma – em Santos, terra de Herzog – lhe trai mal ela vira as costas. Desolada, desesperada, a devassa viúva acaba por ser chamada por Frey Luiz de Atahualpa, frade já muito idoso que se recolhera a um mosteiro nos Andes bolivianos, de lá percorrendo viagens astrais para atrair almas necessitadas de socorro espiritual. Alissia lhe inspira piedade e é convocada, juntamente com um tal de Manoel Herzog, a quem Frey Luiz chama para ser o tradutor para a língua portuguesa de seus elevados poemas, esperando também salvar a alma de tal devasso. 

Inicia-se assim a travessia espiritual de Alissia, estruturada a partir da figura arquetípica da mulher pecadora que se arrepende e redime, personificada, por exemplo, em Maria Madalena e em Santa Maria Egipcíaca. Sobre a segunda, já escreveram Rachel de Queiroz e, em verso, Manuel Bandeira e Cecília Meireles. O “Oratório de Santa Maria Egipcíaca”, de Cecília, é magistral na figuração do arquétipo, envolvendo-nos na história da mulher bela e consciente de seus predicados, que se propõe “inaugurar um porto de amores,/ ser a sua mais fina mercadoria”, para depois se arrepender de sua vida pecadora e se converter, num barco com romeiros rumo à Terra Santa.

Enquanto a linguagem de Cecília é elevada, a de Herzog mistura e funde, de forma bastante original, o elevado da poesia com o coloquial de nosso dia a dia. A Comédia de Alissia Bloom é profana, utilizando-se muitas vezes da mais chula das linguagens. Erótico, pornográfico? Sem dúvida. Mas Manoel Herzog, com sua criatividade voraz, no fundo é um homem religioso, que se diverte com as delícias da carnalidade na linguagem, mas deseja integrá-las ao caminho que leva à fé e ao Espírito, como muitos dos escritores satíricos e pornográficos. A Comedia de Alissia Bloom é texto baixo, escatológico, e é sublime. E com sua deliciosa viuvinha, esperamos todos chegar aos Céus. 

Cabem ainda algumas palavras sobre seu título. Ainda que nos faça rir e muito, a "Comédia de Alissia" revela seu sentido pleno não por seu aspecto propriamente engraçado, e sim por usar da estrutura da comédia, qual a obra magistral de Dante em que Herzog foi beber. Ou seja, como nos fala o crítico canadense Northrop Frye em sua Anatomia da crítica, a comédia, em oposição à tragédia, estrutura-se de forma a levar à resolução do conflito, à integração de seu protagonista com a sociedade (e aqui, especificamente, com a esfera religiosa), e não a seu despedaçamento. O livro de Herzog, assim, dialoga com a Divina Comédia não apenas pelo verso inicial (“No meio do caminho da minha vida”), ou por sua divisão em três cantos (“Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”), mas por pertencer à comédia e, ainda, por se organizar segundo uma visão de mundo que é, mais que tudo, religiosa. 

E nesta mistura de religiosidade com a esfera profana e a mais baixa carnalidade, a leitura de Alissia me fez lembrar Carlos Heitor Cony, que, como editor da revista Ele Ela, nos anos 1970, chegou a um momento de cansaço com o erotismo. Queria a pornografia pura e simples, sem frescura, sem disfarce. Daí Pilatos, livro que nos conta a história de um homem que, atropelado, é amputado à revelia de seu falo, passando então a percorrer as ruas do Rio de Janeiro com o membro em um vidro, prometendo nunca se separar dele. Seu melancólico narrador-protagonista, Álvaro Picadura, fica privado de qualquer prazer sexual, mas se torna amigo de Dos Passos, homem que sofre de “furor fálico”. No romance de Cony, este autor que passou nove anos de sua vida num seminário, preparando-se para ser padre, a carnalidade é tanta que o desejo é de ascender, passar por cima dela. Acho que Alissia vai justamente por aí.

Teodoro Bartoli é jornalista e ministra oficinas de escrita criativa. Natural de Rio Grande (RS), atualmente reside em Nova Dourados (MS). 

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.