quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

by Pat Perry 

ACORDES RETORCIDOS


Por Murilo Mendes

- A vida dele é um inferno. Em sua fase inicial, levava as experiências sonoras ao limite do insuportável, torcia os acordes como se eles fossem uma toalha e aproveitava até o líquido escorrido para levar mais estranhamento ao ouvinte. Agora, de uns tempos para cá, deu para simplificar as coisas, trabalha muito com notas naturais, embora ainda se mantenha inovador no compasso e na forma de execução. Mas que é mais simples hoje em dia, isso é. E tenho a impressão, pela conversa que tive com ele, de que a mudança nada mais é do que uma forma de ironia. Para entender a segunda fase o ouvinte tem que compreender a primeira. Só que ninguém nunca o compreendeu. Como alguém vai saber se a segunda fase é uma fase irônica se nunca compreendeu bulhufas dos acordes retorcidos?

O professor voltara desolado da visita ao artista, o homem dos acordes retorcidos. E agora relatava ao amigo Mário detalhes do encontro. 

- E ele?,  perguntou-lhe Mário. 

- Ele? Ele me diz coisas assim: “eu sinto que já cheguei mais perto. Agora, acho que estou me distanciando”. 

- Perto do quê?, quis saber Mário.

- Não sei, é assim que ele fala, é por meio dessa linguagem evasiva que ele se expressa. E não adianta querer tornar o diálogo mais objetivo. Ele desconversa. 

- Uma vez, cheguei tão perto que achei que tudo estava feito, que não precisava fazer mais nada. Dura ilusão. Tive que recomeçar humildemente, quase fui obrigado a esquecer tudo o que tinha feito antes, só consegui aproveitar algumas coisas secundárias. 

- Quais coisas? 

Pergunta vã, o professor não obteve resposta objetiva. O homem dos acordes retorcidos calou-se. 
Seria um impostor, Mário?  A linguagem evasiva é do gosto dos impostores, meu caro. A linguagem evasiva de certo modo constrange o interlocutor, por mais preparado que ele seja. O interlocutor sempre ficará com uma pulga atrás da orelha, sacou? . Será que esse cara está dizendo uma coisa genial cujo alcance eu não peguei? “Sinto que já cheguei mais perto!”. Isso não é uma frase. Isso é uma armadilha! Ele estendeu o pano e me espera como o toureiro espera o touro maluco. Se eu insisto em saber o que seria esse chegar mais perto, ele saca da cartola o outro método do impostor, que é não dar bola para que o que lhe foi perguntado, mudando de assunto descaradamente para deixar claro que a pergunta não faz sentido e assim aumentar ainda mais a insegurança de quem a fez. Entendeu, meu querido Mário?

Ou seria um gênio? Que os acordes retorcidos são coisas concretas, perceptíveis, de qualidade perfeitamente aferível, ninguém pode negar. Nunca ninguém viu nada parecido. Há, claro, os invejosos, que tentam propagar a versão de que ele, em verdade, só está repetindo um modo de tocar já inventado por um sujeito que conheceu não sei onde, morreu em circunstâncias desconhecidas e deixou-lhe o legado. Sempre há um “outro”, Mário, quando se quer desmerecer alguém. Se esse outro não existe, se a sua existência não pode ser comprovada, não há problema algum: o invejoso inventa uma história mais ou menos verossímil, a história corre de boca em boca e dali um tempo a versão já está consolidada. Claro que foi ele quem inventou a técnica dos acordes retorcidos, Mário. Claro que foi ele. Não há dúvida. Esqueça a teoria da impostura. Foi ele, sim. A estranheza dele é um aspecto da personalidade genial, não é excentricidade fabricada. Foi ele, Mário!

O professor já se despediu de Mário a agora dança em seu apartamento ao som da música do artista que acabou de visitar. “Já cheguei mais perto!”. A frase do compositor não lhe dá sossego. E ele dança sem parar. Só o professor sabe que o artista original, o outro, existiu mesmo. Só o professor sabe que foi ele, professor, quem inventou a técnica revolucionária dos acordes retorcidos, entregou as partituras para que um amigo seu esquecesse de propósito na casa do músico, o músico se agradou do que viu e nunca disse a ninguém que aquilo lhe tinha chegado de graça. O professor não se importa. Dança e dança na sala de seu apartamento. E, quando lhe vem a frase enigmática (“já cheguei mais perto”), lhe bate no peito um sentimento de superioridade anônima que nem todas as manchetes do mundo conseguiriam superar. 


Murilo Mendes nasceu em Santa Catarina, tem 53 anos, é músico e autor de dois CDs: "Ritmos, Palavras e Nada Mais Além" e "LP 13"). Também atua como cronista de Facebook. É servidor público federal.

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