segunda-feira, 12 de janeiro de 2015


A poesia ‘acontecimento’ em Cair de costas

Por Erre Amaral

O poeta e ensaísta Cândido Rolim inicia o seu posfácio para a coletânea de poemas Cair de costas de Ronald Augusto, com a seguinte afirmação: “Até que enfim uma poesia me comunica que não quer comunicar. Que sua função é outra: cair fora do ‘sistema unívoco da linguagem’ (Adorno), ‘significar a esmo’, jamais atingir uma margem, nem o ambíguo conforto da forma. Enfim uma escritura que, após o front da linguagem, os secretos escrutínios, funda outros desafiadores sentidos”.

Após a leitura dos desterritorializantes poemas do Ronald, não há como não concordar com Rolim, não só com o parágrafo introdutório de “Fissuras em Cair de costas”, acima mencionado, mas com todo o conteúdo ensaístico de seu instigante posfácio.

No entanto, gostaria de fazer uma outra arriscada leitura, transversal a de Rolim, sobre a obra em questão.

Arriscada porque o chão onde pisarei é um tanto escorregadio, posto que fragmentário e hesitante, a saber, a noção de “acontecimento” na démarche foucaultiana. Transversal, em razão de tentar fazer a leitura de Cair de costas aquém ou além da linguagem, elemento do qual não se afastou totalmente Rolim em seu ensaio, pois que, ao fim e ao cabo, ele pensa em termos de fundação de “outros desafiadores sentidos”, a despeito da incomunicabilidade da poesia ronaldiana, preconizada na citação acima.

Para se compreender o “acontecimento” em Foucault é necessário cotejar tal noção com a de “estrutura”. Estrutura está para aquilo que é pensável, que se expõe à racionalidade analítica, que se dá à interpretação simbólica e sígnica, culminando numa lógica cognoscível. Já, acontecimento, diz respeito ao âmbito do impensável, pressupondo uma irracionalidade, um dispositivo infenso à análise, à hermenêutica, escorregadio, cambiante, inapreensível.

Tome-se, à guisa de poema ‘paradigmático’ de Cair de costas, um que compõe o “I Onoma” de Vá de valha (1992):

pedra o quadril uva o
veio
poema a
moenda usança o zuluso
musseque a favela bessangana o
moleque

Eis aí um poema que se recusa terminantemente a se expor ao exercício analítico, tanto no que diz respeito ao viés simbólico, quanto ao que tange às estruturas significantes. Trata-se de um poema que não se quer linguagem, apesar de que, para tal fim, fazer-se em sememas que ao somar-se resultam em versos ininteligíveis.

Daí a hipótese foucaultiana que quero suscitar: a única análise a que o poema de Ronald se abre em frinchas é àquela cuja sanha é pela irrupção da luta, da guerra. A linguagem deixa de ser linguagem para se tornar dispositivo, máquina de mover tensões, de estabelecer conflitos entre forças adversas, por meio de estratégias e táticas que, ao invés de fazer girar a engrenagem do inteligível, interrompe seu funcionamento ao fazer entrechocar seus dentes de ferro.

A relação que a poesia do Ronald estabelece com o leitor é a da irritação bélica e não a do alívio proporcionada pelo sentido.

Que não se busque socorro, para apreensão do dispositivo Cair de costas, nem na dialética, com sua lógica da contradição e seu desprezo pelo caráter fortuito e aleatório do acontecimento; muito menos na semiótica e sua estrutura comunicativa e apaziguadora. O leitor que ousar lançar-se ao estranhamento que tal coletânea de poemas proporciona, deve vir armado, pois não se trata de uma leitura fruitiva, mas de um confronto violento com consciências adormecidas, com cognições afetadas, com lógicas viciadas, com certezas em desuso.

Não há sentido em Cair de costas, apenas acontecimentos, e estes vivenciados tão só por leitores que não perderam a capacidade de se reinventar.

O Ronald diz esta coisa melhor:

diz

trair a tradição

inventar a

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