quinta-feira, 8 de janeiro de 2015



Distrito Federal, de Luiz Brás


Por Manoel Herzog

Encontrar o Curupira ou o Saci-Pererê no enredo de um romance futurista pode parecer uma sofisticação de ficção científica - e é. Quando, todavia, as figuras folclóricas habitam um universo paralelo, que é o que lhes cabe, mas junto a outras ancestralidades como a anta, a jaguatirica, os índios, as árvores, fauna e flora de um cerrado morto há eras, a sensação de incômodo passa a habitar o leitor.

Distrito Federal (Editora Patuá, 2014) é romance de horror, o horror que caracteriza a desagregação moral da política nestes tempos de estertor do capitalismo. Mormente o capitalismo de país periférico, a reboque do que se pode entender por civilização, onde a livre iniciativa e a possibilidade de ascensão, máximas do ideário liberal que sustenta o regime, são truncadas pelo protecionismo do Estado aos grupos de privilegiados e à corrupção política, na medida em que este mesmo Estado deixa à mercê os que deveria cuidar.

Luiz Brás constrói seu romance com um texto fragmentário, de uma curiosa prosa poética, concatenando as divagações de um personagem central, o Curupira, mas narrado por uma interlocutora, figura que mescla maternalidade e companheirismo. O Curupira do romance é ser folclórico/elemental que se apossou de um organismo humano modificado, uma espécie de ciborgue. A trama se passa num futuro longínquo, onde próteses compõem parte do corpo humano, corpo este que pode bem ser invadido pelo que sobrou, em fantasma, de um tempo sepultado de Natureza e brasilidade. Curupira, habitante do organismo protagonista, é reconhecido por sua preceptora, a narradora da história. Ela descreve em minúcias como o personagem central, mistura de espírito, corpo e prótese, ou, noutro plano possível, passado presente e futuro, se incomoda com o cheiro de podre da corrupção, do qual só se livra matando e esquartejando corruptos e corruptores.

É assim que o serial killer da trama vai dando corpo a este denso romance, sacrificando cruelmente o juiz que vende sentenças; o deputado que recebe dinheiro de empresas para votar conforme seus interesses; o assessor de ministro que vende possibilidades junto ao governo; o secretário de Educação que desvia verbas da escola pública; e assim por diante.

Notam-se, neste romance de tempos hodiernos, duas influências de uma mídia que vem, se não suplantando, mesclando-se à Literatura, como a tantas outras formas de expressão - o Cinema. Ouvem-se aqui ecos de filmes: Constantine, de 2005, e toda a série de Hannibal Lecter, que inicia em O Silêncio dos Inocentes. No primeiro, estrelado por Keanu Reeves, o personagem central, um exorcista, interage em universos paralelos que são todos vivenciados a partir de um único ambiente. Assim o inferno, o paraíso e a terra estão todos num único lócus, dependendo do ponto da visão dos personagens. É o exato caso deste livro, em que o Curupira enxerga em espírito coisas já falecidas, espectros de animais silvestres extintos, índios, um cerrado morto sob os escombros de a civilização de concreto que é Brasília, sede do governo de uma nação que não deu certo, pois pautada na corrupção, no predatório, no lucro imediato. A síntese do país que formamos, desde a crueldade do colonizador à absoluta subjugação, que redundou em conformação masoquista dos nativos e escravos, indefesos à brutalidade, tudo selado pela ganância do imigrante, que veio tardiamente também ele ser explorado e explorador. Desta nação resulta hoje, agonizando o recurso natural com exaurimento e morte de toda uma Natureza exuberante, a corrupção política e a lei do levar vantagem em tudo, como uma tentativa desesperada de tentar sugar do bagaço as últimas gotas de sumo.

O protagonista encarna a revolta de um povo sofrido, portanto. O desejo latente de vingança, de devolver a violência suportada historicamente. A correspondência com a segunda referência cinematográfica surge então e, constituindo-se num assassino cruel e metódico, encontra como único lenitivo ao cheiro pútrido a matança e esquartejamento dos corruptos, o que faz com requintes, saudado e estimulado por sua narradora. Chega mesmo, depois que os produtos dos crimes ganham o noticiário, com os corpos descobertos, a arrebanhar um séquito de admiradores, que o toma por mestre. No entanto Curupira gosta de agir sozinho - sua missão não o enobrece, sabe que está delinquindo, matando, mas o faz como que por um impulso de justiça, mata escórias sociais, daquelas sem as quais o mundo pareceria ficar melhor. Este o mecanismo que sustenta a pena de morte, a tortura e tantas aberrações, tão desejadas, no calor da revolta, a dias de hoje, por multidão de desesperançados que, sem estofo político ou conhecimento de História, reverbera o discurso fascista. Luiz Brás trata com muita sensibilidade o tema, fazendo do protagonista, o assassino Curupira, um encarnador da revolta de toda uma nação. E de seus métodos, num terreno literário, futurista e insólito, a catarse de um povo que sofre as consequências do processo histórico que resulta no país injusto que conseguimos ser, a despeito de tantas lutas por dias melhores.

Distrito Federal escancara uma realidade política aversiva, mas mais do que tudo, verdadeira. Dá dimensão à insolubilidade de nosso problema, que  não se vai resolver nem amenizar com troca de partido ou de políticos no poder, mas apenas com uma total subversão a um sistema carcomido, no qual corrupção é corolário primeiro, mas a injustiça é a tônica. Uma obra incômoda, forte, reflexiva. Fragmentária. Como o ser do próprio autor, que se desdobra em escritor, ilustrador, crítico e tantas outras facetas, a obra, nessa desagregação caótica busca uma unidade, trazendo-nos à compreensão de uma condição social e histórica que precisa, urgentemente, ser discutida. Não há campo melhor para se começar a remodelar que a Literatura.

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