quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Anna La Mouton (sem título)


Por Marco Aurélio Cremasco
Os olhos, dizem, são as janelas da alma. Nasceu qual gato, rato, animal de olhos cerrados. Tateou solos. Cresceu isolado, bicho do mato acuado. Rompeu manhãs, tardes, madrugadas. Sentiu a chuva, o sol, a brisa da noite e as tempestades que nascem dos clarões. Em um desses, abriu os olhos depois de treze anos do nascimento. Quando o fez, lançou a mãe à sandice. Magnetismo indescritível. Intolerável, de modo a ter que afastá-lo de quem pudesse fitá-lo. Infância entre porcos, bois e vacas. Olhar de enlouquecer aranhas, escorpiões que não se atreviam aproximar. Na ventura de peçonha nele inoculada, rapidamente transformava-se em lágrima perfumada. Caso Medusa existisse e a ele ela lançasse o olhar, a cabeça da Górgona transformar-se-ia em uma guirlanda de heras e magnólias multicoloridas. Por onde andava e para onde olhava, os animais aproximavam-se, rodeavam-no e deitavam-se a seus pés. Os pássaros cantavam ou não na dependência de seu humor. Contudo, quase sempre cantavam. Nem Orfeu com a lira nem Pã com a flauta ou Tião Carreiro com a viola seriam capazes de tanta magia. Deixava patas, marrecas e galinhas desorientadas. As cabras achegavam-se, balançando-se para serem ordenhadas. Bastava um olhar, bem como esse mesmo olhar para que a goiabeira florisse e a roseira recolhesse os espinhos para não feri-lo. O campo não mais o abrigava; imagine o que não faria na metrópole? Passada a adolescência, migrou para a capital. Ao chegar, os níveis de poluição diminuíram assustadoramente. O trânsito fluiu como se aquele dia fosse feriado. Não houve roubo, sequestro, assassinato. Chegou à casa do tio. A tia voluptuosa não suportou. Haveria de entregar-se, bem como a prima que se debutaria no prazer de tê-lo entre colo, braços e pernas. E assim tantas mais. Tem a pupila encarnada de Thor – dizia uma. A pupila amarela do Caipora – suspirava outra. Azul de Urano. Verde. Violeta. Laranja. O arco-íris nos olhos. Para cada uma, uma cor. A cor que cada uma sonhasse. O seu olhar era reflexo do desejo e as cores delatavam a danação da paixão. Desnudou-se. Andou pela cidade e os prédios erguidos, quais falos a desafiar a nervura do céu, eram pintados a gosto de seu pensamento. Bastava, apenas, o olhar. Aos poucos, tudo aquilo o exauriu. Queria retornar ao que era: gato, rato, animal de olhos cerrados ou simples bicho do mato acuado. Passou a usar uma venda, cerzida em pano de chita, e a tirá-la para aliviar o cansaço da face na água que jorrava por este ou aquele chafariz. Até a água demorava segundos a mais em seu rosto e a toalha se negava a abandoná-lo, esquentando-o, por conta, quando frio; refrescando-o por capricho no verão. Foi, então, que se lembrou da infância isolada, quando se acomodava às margens de uma cascata, esta desviava o rumo das águas para tocá-lo, para despertá-lo à vida. Todavia, a vida tornara-se ordinária. A vida fizera-se sem sentido. Teria o amor que aspirasse, o poder que almejasse e escreveria seu nome na história que lhe aprouvesse. O que lhe restava? O que poderia revelar na solidão do olhar? Vasculharia o outro, procurando auscultar espíritos infelizes? Os olhos não são as janelas da alma. Por eles maridos foram traídos, esposas lançadas à loucura e nações destruídas. Não se aplica o ditado, porém o epitáfio de que o olhar é o abismo que traga almas. Inclusive para ele ao esmurrar o espelho e com os cacos cegar-se à morte.

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