quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Andrea Mantegna - O Martírio de S. Sebastião, 1459


Por Manoel Herzog

O MARTÍRIO DE SÃO ARCHER


Passando pela praça Camões, na Glória, cidade do Rio de Janeiro, demorei bastante em frente à estátua de São Sebastião atado ao tronco, crivado de flechas. Minha simpatia por este santo decorre de alguns fatores – primeiro, meu incondicional amor pela cidade do Rio de Janeiro. Enquanto contemplava o santo, uma pequena bateria de escola de samba fazia exercícios militares. Os homens da malaca, uma infantaria, repetiam o toque de um maestro negro à batida ritmada de um surdo original, completamente diferente dos surdos paulistas. Vivi parte da juventude em escola de samba, e mesmo fui um membro da artilharia das malacas, aqui chamadas tamborins. Conheço, portanto, todos os toques que aqueles bravos soldados repetiam. Fui um deles.

Além do Rio, tem São Sebastião, linda cidade paulista. Tem a capa de um dos melhores discos de João Bosco, o Caça à Raposa, e tem a figura mítica de Dom Sebastião, o rei português desaparecido em combate na África que, juram, voltará um dia para resgatar a dignidade do império lusitano.

São Sebastião agoniza flechado com os olhos voltados para o céu, em pedido de clemência. Dado como morto pelos arqueiros que o executaram, seu corpo foi jogado num rio.  Mas, não tinha morrido. Resgatado por uma santa, foi posteriormente descoberto, novamente supliciado, e seu corpo definitivamente largado nas valas de Roma. Dizem que Sebastião foi santo - quero crer que, pra merecer tamanha malvadeza, deve ter aprontado. Ou então Roma era o império do mal. Talvez o martírio santifique independente de méritos.

Emocionado com meus companheiros em exercício militar fui acometido por uma filosofia: que sentimento deve permear a conduta dos arqueiros, os executores do pelotão, se eles simplesmente cumprem uma ordem, feito os batedores de tamborim ali faziam. Mas os batedores de tamborim o fazem por amor ao oficio, fazem-no impregnados, tomados do espírito de um ritmo maior. Os arqueiros devem ter grande dificuldade, não é oficio simples de cumprir supliciar um santo. No estrito cumprimento deste dever legal os arqueiros atrasam por demais sua evolução espiritual, podem até ser conduzidos ao inferno, se é que existe santidade, divindade e tudo isso lá do outro lado. Talvez os arqueiros desacreditem do lado outro, e por isso cumpram seu dever sem maiores questionamentos, metem flechas no tenro corpo do santo e pronto. Executam ordens, a bem da harmonia de uma bateria de escola de samba gigantesca chamada Estado.

Foi assim que, projetando a história duzentos anos pra adiante, inventei um novo santo, que batizei de São Archer. Na minha hagiologia São Archer figurará mártir, supliciado a mando de um Estado cruel e corrupto, para dar exemplo, sob súplicas de homens piedosos mas também sob o aplauso de uma legião de bestas-feras que gozam ao ver sangue. O martírio de São Archer terá sido em terras longínquas, não em seu país. Ele tentaria levar aos pobres cidadãos daquelas terras a possibilidade de se libertarem da dura realidade em que viviam. Ao tempo de São Archer, haveria substâncias com o poder de colocar em êxtase divino, falar com anjos, fugir da opressão do Estado e da sociedade violenta. São Archer terá sido muito querido pelos habitantes daquele país, mas em contrapartida terá sido odiado, muito odiado, pelo regime ditatorial de lá. Tanto que, preso e acusado, será sentenciado a padecer atado num tronco o grave suplício, não mais com flechas, que naquele tempo futuro tais armas estarão em franco desuso, mas com balas. Uma tropa de arqueiros terá sido designada para a execução. Assim como Sebastião, Archer terá escapado de uma primeira prisão, despertando a ira de seus carrascos, por tripudiar de Roma, mas agora seu fim será certo. Na meia noite de um dia de um futuro incerto, são Archer terá tombado sob as balas dos verdugos que jamais aceitam um homem experimente o êxtase.

Na verdade, durante a vida terrena, Archer não foi reconhecido por santidade. Era homem comum, considerado por alguns mesmo um elemento perigoso, nocivo à sociedade. O martírio, contudo, paradoxalmente ao bárbaro que representa, eleva o mártir a um status compensador, torna-o santo, passa a operar milagres. A coragem dos santos é recompensada com o reconhecimento posterior, feito Prometeu, que roubou a luz divina para dar aos homens e foi executado pelos deuses tiranos.

O grande milagre de São Archer foi ter, ao tempo de seu cruel suplício, revertido o quadro de degradação moral em que a sociedade de seu país se via mergulhada. Ele terá sido o primeiro cidadão dali sentenciado por um Estado estrangeiro com a pena capital. Nunca um compatriota de São Archer havia sido executado em tempos de paz por um Estado amigo, até porque o país de onde era natural nosso santo era, com toda a crítica que se pudesse fazer,  fundado sobre princípios humanistas, onde pena de morte era coisa inconcebível. Todavia, naqueles tempos horrendos, uma turba de gente raivosa no país de São Archer vinha cogitando rever seus fundamentos humanistas e pacíficos – pensavam de mudar a estrutura das leis e impor a pena capital. Tencionavam tornar-se um Estado fascista, guiado pelos impulsos de pervertidos e maníacos, políticos com discurso hipócrita, fundamentalistas religiosos e neomilicianos. 

O brutal martírio de São Archer num primeiro momento provocou orgasmos da camada mais temperamental da sociedade de seu país. Muitos foram os gritos de “bem feito”, “lá é que se cumprem as leis”, “aqui devia ser assim”,  e ignorâncias afins. Logo, contudo, prevaleceu o pensamento racional e os tolos se foram calando, dando razão às pessoas sensatas, e o país de São Archer viu-se por muito tempo livre do fascismo e da sombra do ódio. Nunca mais se voltou a cogitar a implantação da pena capital, tornando-se aquela sociedade, graças ao sofrimento do santo, mais humana, justa e avessa à violência, particularmente violência de Estado, que é a mais inadmissível. Se o Estado tem por finalidade libertar o homem da barbárie, claro resulta que não pode ele, Estado, praticar a barbárie.

Por muitos anos depois de sua morte São Archer ainda terá sido cultuado, embora pouco, pouquíssimo se vá saber de sua figura histórica. Tudo terá sido fruto mais da crendice popular, porque é doce acreditar, e porque assim nascem santos e heróis. Nós os criamos porque precisamos deles, podemos fazer de um homem comum, até de um bandido, um santo, e isto é bom. 

Num futuro distante ainda haverá gente ateia dizendo que São Archer foi na verdade um pária, um traficante nefasto, um verme que mereceu mesmo ser executado, e que ainda foi é pouco o que sofreu. Feito Caifás, feito a multidão que escolheu Barrabás, muita gente de alma lavada terá gozado com o martírio de São Archer. Mas tantos se terão tornado devotos que o bom senso da bondade humana acabará, mais uma vez, prevalecendo.

De minha parte, eu que não julgo São Archer, nem dele sou devoto, de uma coisa estou bem certo: o suplício, de um santo ou de um pária, é coisa hedionda. Tirar a vida a um semelhante é crime em qualquer situação, e nem como medida retributiva a outro crime pode ser consumado. Se um Estado ainda o determina, como em outros tempos em nome da religião se determinou, é necessária a vinda de santos, ou mesmo do messias, pra nos tirar de tamanho atoleiro.

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