quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Senhora Amargura (Fotografia de Solange Cremasco)


Por Marco Aurélio Cremasco


Sentou-se frente à tela, desligada, observando-se em reflexo difuso. – Sou aquela ali. O olhar revela e a experiência desintegra. Sou quem trança o traçado das horas nas contas de olhos desafortunados. Sou a velocidade do desprezo, o verde do sinal vermelho e a pressa no apito do trem. Também sou desmemoriada e desmedida no despacho esquecido nas esquinas. Sou a face calada; e-mail embebido de perfume vagabundo que nunca foi postado. Sobrevivo nos bueiros e me alimento de carcaças. Pudera, nasci no ventre da escória e desconheço qualquer coisa que leve pouco mais do que dez segundos. Sou o parapeito da janela secular que guarda a sombra de quem há muito se foi, como também sou aquele suspiro que o vento não resgatou. Sou a intolerância de quem é interrompida no instante do gozo, pois o meu momento é fácil e não preciso me preocupar. Sou o que é de ser: para amanhã, jamais. 

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